segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O mestre-cuca sem nome


De autor desconhecido, O cozinheiro imperial, primeiro livro brasileiro de culinária, revela, além de receitas exóticas, o gosto e o comportamento das elites do século XIX
Leila Mezan Algranti

O cozinheiro imperial é considerado o primeiro livro de cozinha brasileiro. Publicado pela primeira vez em 1840, recebeu edições sucessivas até o final do século XIX, indicativo do sucesso que atingiu na época. Recentemente reeditado, continua a chamar a atenção dos leitores não apenas pela antiguidade e curiosidades que suas receitas contêm, mas pelo mistério que envolve o autor, que preferiu não se identificar. Mais interessante se torna o livro ao se constatar que a intenção do autor de trazer a público uma obra inovadora e atualizada não corresponde a seu conteúdo, já que o Cozinheiro imperial é uma compilação ampliada dos dois primeiros livros de receitas portugueses, datados, respectivamente, do final dos séculos XVII e XVIII. O que teria motivado um “chefe de cozinha” (conforme se intitula o autor) a ocultar-se atrás de apenas três iniciais: R.C.M.? Quais os significados que este livro apresenta para os admiradores da arte culinária e para a história do Brasil?

Muitos motivos podem ter levado o autor do Cozinheiro imperial a preservar sua identidade. Porém, seu interesse pela culinária e pelos rituais ligados à alimentação torna-se evidente na cuidadosa consulta que realizou em livros de receitas estrangeiros antigos. Em especial, na Arte de cozinha, de Domingos Rodrigues (1680), e em O cozinheiro moderno ou Nova arte de cozinha, de Lucas Rigaud (1780), ambos afamados cozinheiros da casa real que marcaram a culinária portuguesa com suas receitas e informações técnicas. É exatamente a ausência de um estilo de cozinha e de instruções pessoais que leva a supor que o autor do primeiro livro de culinária brasileiro não tenha sido um cozinheiro. Além disso, muitas seções do livro se ressentem da falta de produtos locais em suas receitas, como, por exemplo, o segmento da doçaria, no qual não há referências aos frutos tropicais. O fato de o autor se intitular chef pode ter sido uma forma de conferir respeitabilidade à obra, reafirmando uma antiga tradição na história da edição dos livros de cozinha, cujas obras mais divulgadas, desde a Idade Média, foram escritas por cozinheiros experientes, a serviço das grandes casas da nobreza européia.

Assim, não se sabe se o autor de fato elaborou as receitas apresentadas, ou se era um mero curioso e pesquisador de textos antigos. Mas é certo que teve cuidados especiais em atualizar pesos e medidas, a fim de viabilizar a execução das receitas que compilou. Também ampliou e revisou a segunda edição de sua obra, acrescentando anexos e apêndices, mesmo que estes fossem tão antigos quanto boa parte das receitas apresentadas. Um exemplo é o anexo intitulado “Método para trinchar e servir bem à mesa”, aparentemente de pouca utilidade em uma época em que as aves e as caças já vinham cortadas da cozinha. O trinchador, importante figura nos banquetes medievais e da época moderna, há tempos já havia desaparecido, inclusive nas cortes européias. Cabe mencionar também o “Adendo sobre boas maneiras à mesa”, que continha uma série de prescrições, algumas delas divulgadas nos manuais de civilidade editados desde o século XVI.

Em termos de títulos e modo de preparo, as receitas são tão parecidas com as dos dois livros portugueses que sugerem, em muitos casos, uma simples transcrição. Na lógica da edição dos livros de cozinha da época, contudo, não se pode dizer que o Cozinheiro imperial tenha sido um plágio dos outros dois. Tratava-se apenas de procedimento corriqueiro. Os tratados de culinária se inspiravam, em geral, em um modelo anterior, muitas vezes datado de alguns séculos. Mas um livro não é pura repetição de outro; datadas e localizadas, as receitas permitem comparações tanto no tempo quanto no espaço. Na verdade, elas revelam o que se poderia comer, e não o que se comia.

O cozinheiro imperial apresenta as receitas na ordem em que os pratos deveriam ser servidos na refeição (sopas, carnes, aves, peixes, doces). Mas há também capítulos organizados por tipos de alimentos: pratos de ovos, de leite, de legumes, de massas e molhos, contendo receitas doces e salgadas. No capítulo dedicado aos ovos, por exemplo, encontram-se desde ovos cozidos e omeletes a fios-de-ovos e outros doces. O mesmo sucede no capítulo sobre as massas, que contém receitas de tortas de carnes e legumes, assim como de tortas de frutas. Os doces – indispensáveis no último serviço de mesa, desde o século XVII, quando o açúcar fez sua entrada triunfal na cozinha – recebem um capítulo especial. Mas há receitas de doces em outras seções. A estrutura do livro não segue, portanto, uma lógica única. Para compor uma refeição, o melhor seria consultar atentamente o índice em busca das sugestões sobre como preparar os produtos disponíveis. Mas o leitor não se decepcionará. Encontrará uma grande variedade de receitas para as mais diferentes ocasiões, bem equilibradas em termos de tipos de alimentos, com explicações e medidas razoavelmente claras. Se a intenção, por exemplo, for um prato de ave, são oferecidas 34 opções, contendo “frangos, frangões e capões”, preparadas na forma de ensopados, grelhados, almôndegas e pastelões. Não faltam, tampouco, muitas receitas de pombos, patos, perus e perdizes. No domínio das carnes, as mais presentes são a carne de carneiro, com cinqüenta receitas; vaca, com 49 receitas; vitela, 25; porco, 23; veado, seis; e cabrito, com cinco. Estas sempre representadas em diversos cortes e incluindo os miúdos – (rins, miolos, língua, fígado, cabeça, rabo, pés etc). Presuntos, lingüiças e chouriços de vários tipos também estão presentes.


O leitor brasileiro do século XIX, contudo, poderia se surpreender com a quantidade de receitas contendo produtos pouco comuns no Brasil da época, tais como alcachofras, trufas, várias espécies de feijões e favas, bem como peixes desconhecidos, além de uma infinidade de doces feitos com amêndoas e frutas típicas do hemisfério Norte. Quanto aos temperos mais freqüentes, a tradição portuguesa se faz presente até mesmo no termo utilizado para designá-los. Segundo o autor, “os adubos que se costumam usar na cozinha são: sal, pimenta-do-reino, cravo-da-índia, noz-moscada, gengibre, canela, pimenta longa, semente de coentro, erva-doce, cominho e semente de funcho”. Mas a combinação de cebola com alho e salsa e cebolinha reinava na culinária do Cozinheiro imperial. São produtos considerados indispensáveis no preparo de muitas carnes, sopas e molhos. As folhas de agrião, por sua vez, temperadas com sal e vinagre, servem, segundo nosso “chefe”, para guarnecer as aves; e o estragão, a hortelã e a pimpinela são usadas para enriquecer alguns pratos, assim como o tomilho, o louro e o manjericão. A variedade de temperos sugere que a culinária do primeiro livro de receitas brasileiro pode ser considerada “moderna”, já que o excesso de especiarias, como canela e cravo, nos pratos de carne, típica da Idade Média, não se faz notar. É de fato a culinária do já citado Lucas Rigaud que o autor segue mais de perto. Afinal, desde o final do século XVIII, foi ela que predominou na mesa da elite portuguesa.

Em termos de gorduras para refogar, fritar, assar e cozinhar, as opções são o toucinho e a manteiga. Na doçaria, a manteiga clarificada, a gordura de vaca derretida e mesmo de porco proporcionam a liga feita com farinha de trigo e gemas de ovos. Quanto às técnicas culinárias, não há grandes inovações. Estas ocorreram de forma mais intensa entre o final do século XVII e meados do XVIII, como se pode avaliar ao comparar os livros de receitas dos dois períodos, nos quais se nota uma maior preocupação com o tempo de cozimento, o controle do fogo e os acabamentos, preservando-se, por exemplo, os molhos das carnes e engrossando-os com farelo de pão. A presença de massa folhada é marcante no final do século XVIII e ocasional no século anterior. O cozinheiro imperial apresenta, assim, várias formas de utilização desse tipo de massa. Também na confeitaria, predominam as técnicas já consagradas da pâtisserie francesa do século XVIII, que, paulatinamente, foram ampliando aquelas da doçaria típica conventual portuguesa do século XVII, quando os doces eram cozidos em tachos e panelas e diretamente levados ao fogo para apurar a massa à base de ovos, gemas e amêndoas. Nosso chefe de cozinha, embora não renegue os famosos doces de ovos portugueses e as compotas de frutas, parece adepto de uma doçaria mais sofisticada, cuja massa básica é feita com farinha de trigo, gordura e ovos, assada ao forno e finalizada com açúcar e pá quente para caramelizar.


Certamente a preocupação com a higiene na cozinha, a boa qualidade dos produtos e a conservação dos alimentos estão presentes na obra, reforçando as instruções de livros anteriores. Mas, se a proposta do Cozinheiro imperial era trazer a público o que havia de mais abrangente em termos de culinária, compilando e pesquisando receitas antigas, os utensílios de sua cozinha não são tão sofisticados, talvez por não atualizar os instrumentos de trabalho que constavam nas receitas originais. Esse fato dificulta uma avaliação das mudanças ocorridas nas cozinhas e nos utensílios usados no preparo de alimentos entre o final do século XVIII e meados do XIX. Panelas, prensas, pilão, formas, caixas e caixinhas, além de peneiras, funis, alfinetes, facas e colheres, compõem o grosso do equipamento dos cozinheiros. Em uma época em que o garfo já era de uso freqüente, verificar a consistência do cozimento com o auxílio de um grande alfinete pode parecer um tanto estranho, até mesmo para um cozinheiro do século XIX.

O primeiro livro de cozinha brasileiro oferece ainda uma seleção de cardápios para banquetes com sua seqüência de serviços, todos eles compostos de vários pratos doces e salgados. Há ainda um menu especial para a quaresma, além de um útil glossário de termos de cozinha. A preocupação com a alimentação dos doentes – uma questão sempre abordada nos repertórios culinários antigos – também transparece nas receitas específicas de caldos para o tratamento de várias moléstias. As receitas internacionais, por sua vez, dão um toque especial ao livro, indicativo de trocas culinárias e intercâmbios culturais, mas também de sofisticação do cozinheiro e do anfitrião que as utilizar: “peru assado à italiana”, “pombos turcos”, “frangas à inglesa”, “rabos de carneiro à prussiana” e “pudim inglês” são alguns exemplos. A forma de nomear os pratos excede suas origens e ganha certa graça, como o “coelho agachado”, o qual, após ser aberto e recheado, deve ser costurado “com as patas traseiras sob a barriga e as dianteiras embaixo do focinho, como se o coelho estivesse agachado”.

Para quem gosta de cozinhar ou aprecia um bom prato, há muito com o que se entreter no Cozinheiro imperial. Como testemunho histórico, esta é também uma obra que traz o que pensar. Os livros de receitas ou de cozinha revelam não apenas certos hábitos alimentares, mas também as técnicas culinárias, os produtos e os instrumentos utilizados e, fundamentalmente, as mudanças e persistências no gosto. Os tratados antigos foram escritos para cozinheiros, mas também para atender às necessidades de seus senhores, com a intenção de informar como deveriam ser as refeições para que os convidados as apreciassem. Saber receber denotava civilidade por parte do anfitrião. Ou seja, a culinária estava presente na idéia de cortesia; isto é, o comportamento que se desenvolveu inicialmente nas cortes européias e que acabou se ampliando para outros segmentos da sociedade. Comer sempre foi um ritual de convivência e havia normas e procedimentos a seguir nesses momentos de sociabilidade.


Esses livros fazem parte, portanto, de um segmento da literatura em expansão desde o início da época moderna, no qual se incluem os manuais de civilidade, e podem ser entendidos como sua extensão ou especialização. Ao que tudo indica, a publicação do Cozinheiro imperial tem o mesmo significado na sociedade brasileira de meados do século XIX. Não importa se as receitas e os produtos apresentados eram “europeus” ou “brasileiros”. Tratava-se de instruir as elites na arte de cozinha e de receber bem, o que poderia significar estabelecer uma fronteira bem nítida entre a culinária trivial e diária e a culinária sofisticada destinada aos banquetes. Afinal, os produtos sempre poderiam ser substituídos, mas as técnicas, os utensílios e a ordem dos pratos em um banquete deveriam seguir os modelos europeus, mesmo que datados de dois séculos; sinal de que o controle dos corpos e dos gestos se insere num processo em que as mudanças ocorrem muito lentamente.

A ausência de uma tradição de livros de cozinha no Brasil até meados do século XIX torna evidente que este saber foi transmitido de outras formas desde os tempos coloniais, mesmo entre os membros da elite. Certamente os cadernos de receitas particulares e a experiência cotidiana foram mais presentes e importantes nesse tipo de divulgação. De qualquer modo, o primeiro livro de cozinha brasileiro não atesta uma “culinária brasileira”, nem indica as transformações ocorridas entre as práticas alimentares portuguesas e aquelas que se desenvolveram na América. Mas pode sugerir a falta de apreço das elites brasileiras pela culinária nacional e a necessidade de importação de modelos de comportamento referentes à mesa, ainda em meados do século XIX.

É provável que o público leitor do primeiro livro de cozinha brasileiro tenha se ampliado ao longo das sucessivas edições da obra, conferindo-lhe significados diferentes, a despeito dos desejos de seu autor, o qual, ao que tudo indica, divulgara aquilo que acreditava ser útil à elite brasileira que vivia na corte ou à sua imagem.

Leila Mezan Algranti é professora do Departamento de História da Unicamp, livre docente em história do Brasil colonial, e autora de Livros de devoção, atos de censura - Ensaios de história do livro e da leitura ,1750-1821(Hucitec, 2004).
Revista de História da Biblioteca Nacional

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