quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O poeta e o sambista

Admirador da arte de Sinhô, Manuel Bandeira via no compositor um representante autêntico do “Brasil profundo” buscado pelos modernistas
André Gardel

“Que língua desgraçada! Que vaidade! Mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca”. Com essas palavras, perpassadas de humor e admiração, Manuel Bandeira (1886-1968) nos narra na crônica “O enterro de Sinhô”, publicada no Diário Nacional em 1930, seu primeiro encontro com o “Rei do Samba” dos anos 1920.

O poeta e o sambista Sinhô se conheceram no velório do escritor e jornalista boêmio Zeca Patrocínio – filho do “Tigre da Abolição”, José do Patrocínio (1853-1905). Foi imediata a identificação poética de Bandeira com o músico popular. Sua crônica revela um encantamento tipicamente modernista: a descoberta de um representante genuíno do povo brasileiro, cuja linguagem era tão prezada por Manuel Bandeira, que num de seus poemas ele faz a apologia da “língua errada do povo, da língua certa do povo, porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”.

Encontros entre artistas cultos e artistas populares são importantes para a compreensão da história social e literária contemporânea. Podemos citar, além do ocorrido entre Bandeira e Sinhô, o encontro de Mário de Andrade (1893-1945) com o tocador de coco Chico Antônio (1904-1993), ou o do antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987) com o genial Pixinguinha (1897-1973). Tratava-se de uma busca apaixonada por poetas, pensadores, prosadores e críticos para desvelar a verdade do país na sua realidade “profunda”, com o intuito de estabelecer trocas vivenciais e artísticas com os representantes mais autênticos da cultura do povo, vistos agora sem idealizações românticas ou ufanismos positivistas.

O objeto do desejo dessas aproximações era a incorporação pelos modernistas da criatividade de uma vasta cultura miscigenada e sincrética para conceber uma língua literária, uma reflexão crítica e uma arte verdadeiramente brasileiras. E um dos momentos mais significativos dessa busca, até hoje muito pouco estudado, foi o mergulho de alguns modernistas, entre eles o próprio Bandeira e Heitor Villa-Lobos (1887-1959), no denso universo de relações pessoais, artísticas, de classes e de raças nascido da boêmia carioca dos anos 20 do século XX.

Encontros como o de Sinhô e Bandeira – um artista culto e um artista do povo – são significativos para a compreensão da história social e literária do Brasil

A obra de Sinhô é importantíssima para o desenvolvimento da música popular brasileira por vários motivos. Surge, por exemplo, num momento em que ocorre a passagem da criação amadora para a produção profissional, ligada ao mercado e à indústria cultural. Por outro lado, circulando por ambientes socialmente diferenciados, Sinhô parece personificar a ascensão de um gênero musical – o samba – ainda não reconhecido e até mesmo desprezado e esnobado pela cultura letrada da época. E é esta sua habilidade que encanta e o põe face a face com Manuel Bandeira.


Só possuímos informações desse encontro a partir do que o poeta nos apresenta em suas Crônicas da Província do Brasil, publicadas em livro no ano de 1937. São escritos repletos de histórias deliciosas, escritas no tempo em que Bandeira viveu na Ladeira do Curvelo, em Santa Teresa, entre 1920 e 1933, momento em que também produziu Ritmo dissoluto (1924), Libertinagem (1930) e grande parte de Estrela da manhã. Testemunho sensível e requintado do desejo de contato direto com a realidade cultural do país, de um “viajante entre classes sociais, raças, religiões e paisagens do Brasil”, o livro reúne algumas das crônicas que o poeta escreveu para diversos jornais e revistas da época, principalmente A Província, de Recife, então dirigido por Gilberto Freyre, e o Diário Nacional, de São Paulo, a pedido de seu grande amigo Mário de Andrade.


Os nomes de Gilberto e Mário não surgem aqui por acaso: os dois foram os principais interlocutores de Bandeira no seu processo particular de descobrimento poético de um “Brasil profundo”. É bom frisar que, para Manuel Bandeira, o mais profundo é o mais cotidiano. Em Crônicas da Província do Brasil encontramos as três crônicas em que Bandeira se refere a Sinhô: “Na câmara-ardente de José do Patrocínio Filho” (publicada em A Província de 12 de outubro de 1929), “O enterro de Sinhô” (no Diário Nacional de 9 de agosto de 1930) e “Sambistas” (na Revista Souza Cruz, em dezembro de 1930 e janeiro de 1931).


Sinhô foi apresentado a Bandeira no auge de sua carreira musical, já entronizado como “Rei do Samba” pelo próprio Zeca Patrocínio, após criar inúmeros sucessos, por toda a década de 1920, que se espalhavam pela cidade com a rapidez de fogo em mato seco: “Pé de Anjo”, “Jura”, “Gosto que me enrosco”, “Professor de violão”, “De que vale a nota sem o carinho da mulher?”, “A cocaína”. Como o rádio ainda não se impusera como meio de divulgação por excelência da música popular carioca, os artistas divulgavam suas músicas usando mil artifícios. Sinhô, malandro e vaidoso, se autopromove em qualquer situação, inclusive no velório do amigo José do Patrocínio Filho.


O sambista se torna conhecido entre 1919 e 1930 – ano em que morreu, vítima de uma hemoptise fulminante, dentro da barca que ligava a Ilha do Governador ao centro da cidade. Ficou marcado na história do samba pela máxima que cunhou: “Samba é que nem passarinho, é do primeiro que pegar”. Polêmicas como essas estão mesmo na raiz do gênero, já que “Pelo telefone” – considerado o primeiro samba, registrado em 1917 por Donga (1890-1974), em parceria com o jornalista Mauro de Almeida (1882-1956) – foi, na verdade, uma criação coletiva feita numa das inúmeras festas que ocorriam na casa de Tia Ciata (1854-1924). Depois do sucesso de “Pelo telefone”, a famosa tia baiana, junto com Sinhô e outras personalidades do mundo do samba que participaram da criação, quiseram adquirir também sua parcela no que já virara um grande negócio.


Por essa perspectiva, o legado de Sinhô pode ser visto como uma espécie de antologia das vozes dispersas do Rio de então; assim como, guardadas as devidas proporções, a obra de Gregório de Matos o foi no barroco brasileiro. Sinhô usa, sem qualquer teoria ou conhecimento de causa, de modo pragmático, procedimentos típicos das vanguardas modernistas, como, por exemplo, o jogo intertextual da paródia e da livre apropriação inventiva da obra alheia. E aqui podemos traçar um paralelo de atitudes criativas entre o semi-analfabeto Sinhô, primeiro grande ídolo da nascente cultura comercial de massa brasileira, e Bandeira, um dos poetas mais cultos e respeitados de nosso Modernismo, que dizia não haver nada no mundo de que gostasse mais do que música.


Vamos nos deter em apenas dois casos exemplares de jogo intertextual e/ou intermusical, comum na estética modernista, utilizados nas obras dos dois criadores. Bandeira, ao fazer a letra para um oratório de Francisco Mignone (1897-1986), “Alegrias de Nossa Senhora”, recorre aos poemas de uma monja carmelita que lhe passara seus versos, ansiosa para saber a opinião do poeta sobre a qualidade de sua poesia. Baseado no material apresentado pela religiosa, Bandeira compôs os versos para a obra de Mignone; contudo, o resultado final, segundo depoimento do próprio poeta, lhe pareceu mais dela do que seu.


Sinhô, por sua vez, compôs a marchinha carnavalesca “Pé de Anjo” a partir da valsa francesa “C’est pas difficile (Jenny)”, numa dinâmica de criação singularíssima. Após ouvir a melodia assobiada por uma freguesa da Casa Beethoven, que o sambista freqüentava para divulgar as partituras de suas canções, tocou e retocou a valsa várias vezes ao piano. Neste processo, acabou por trocar o compasso ternário original da música pelo binário sincopado brasileiro, fazendo ainda alterações sutis no ritmo e na melodia, além de criar uma nova letra, ironizando os pés grandes de China, irmão de Pixinguinha.

Bandeira sobre Sinhô: “Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana”


A letra de “Pé de Anjo” dá prosseguimento à primeira grande polêmica criativa da canção popular brasileira – que terá outras, como as refregas musicais vividas por Noel Rosa (1910-1937) e Wilson Batista (1913-1968) ou por Herivelto Martins (1912-1992) e Dalva de Oliveira (1917-1972) –, iniciada quando alguns artistas descendentes dos baianos no Rio, entre eles Donga e Pixinguinha, ficaram ofendidos com os versos de “Quem são eles?”, samba de 1918 de Sinhô que fala, sem papas na língua, que “A Bahia é terra boa/ ela lá e eu aqui”. A resposta dos “baianos” foi imediata, com “Fica calmo que aparece” (Donga), “Não és tão falado assim” (Hilário Jovino Ferreira) e “Já te digo” (China e Pixinguinha), em que Sinhô é pintado como um sujeito “alto, magro e feio”.


A polêmica, na verdade, simboliza o confronto inicial entre os artistas ainda presos a raízes folclóricas e os compositores urbanos profissionalizados, que já trabalham comercialmente suas canções. Coisa que Sinhô o fez de modo sistemático, seja participando de concursos na Festa da Penha, que ocorriam em outubro e que eram uma espécie de vestibular para os sucessos do carnaval, seja dedicando suas canções a personalidades famosas – como Oswald de Andrade (1890-1954), Tarsila do Amaral (1886-1973) e Roberto Marinho (1904-2003), entre outros – em troca de proteção e patrocínio.


Sinhô também participava ativamente das sociedades recreativas, das batalhas de confete, dos “chopes-berrantes” e “cafés-cantantes”, dos espetáculos de revista da Praça Tiradentes, dos saraus da elite e dos espaços populares não transitados por ela, como, por exemplo, o Morro da Favela. Ali, fez amizade com o mais famoso bandido da época, Sete Coroas, a quem dedicou uma canção, chamando-o de “Bambambã lá da Favela”. Sinhô acaba por merecer de Bandeira essas palavras definitivas: “Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão”.


Aliás, Bandeira estendia o mesmo papel ao poeta e compositor Jayme Ovalle (1894-1955), seu parceiro em “Azulão”, “Modinha”, “Berimbau” e outras canções. Na mitologia pessoal de Bandeira, entremostrada nas Crônicas da Província do Brasil, Ovalle aparece como seu alter ego mais explícito e, como tal, contraponto erudito do popular Sinhô na missão existencial de alimentar as trocas culturais, estéticas e afetivas numa cidade que até hoje se mantém socialmente partida.

André Gardel é poeta, compositor, professor de Literatura e autor de O encontro entre Bandeira e Sinhô (Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1996).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Um comentário:

Café da Madrugada® Lipp & Van. disse...

Essas pessoas, que tem tanta historia, tanta vivencia, e muita cultura no sangue... pra passar!