quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Sociedade encantada

Nobres, religiosos, comerciantes e camponeses se mesclam em um contexto de extremos entre o luxo e a frugalidade, com fôlego para gerar gênios do renascimento espanhol

As Meninas, de Diego Rodriguez de Silva y Velázquez, ca.1656, localizado no Museu do Prado, Madri


A Castela, motor da "máquina imperial" e, portanto, ponta-de-lança da causa de Deus na Terra, está profundamente preocupada consigo e se atemoriza ao menor sinal que acredita captar de desarmonia com o divino - derrota militar, morte de um príncipe, epidemia.

Preocupada em primeiro lugar com seu fraco peso demográfico diante do estrangeiro, que só se buscaria aferir amplamente uma vez, em 1591: 6,5 milhões de habitantes mal protegidos por uma periferia que pouco ultrapassa outro milhão. Preocupada, também, com seu panorama social, uma bipolarização entre muito ricos e muito pobres, sem passarelas entre os "estados". Preocupada, sobretudo, com a sua improdutividade, que percebe como paradoxalmente ligada à grande oportunidade americana: é aí, em especial, que ela viola a ordem natural, a lei bíblica do trabalho redentor, a prescrição divina por excelência.

Essa reflexão vai alimentar duas correntes de pensamento. Uma, pragmática, inspira milhares de textos curtos, muitas vezes incisivos em suas análises, muito embora delirantes ou irrealistas nas propostas de reforma. Deputados às Cortes, edis provinciais, comerciantes aventureiros, soldados veteranos, seus autores fizeram pressão durante décadas nas portas da gestão governamental, antes de ser nela incorporados, entre 1621 e 1640. Eles se denominavam "republicanos" (entendamos: especialistas na política das "coisas"). Os que temiam as conseqüências de sua lucidez eram chamados de arbitristas, algo como "criadores de impostos". Essa cultura econômica é uma das formas menos conhecidas do "século de ouro" do pensamento espanhol.


A outra corrente de preocupação se derramou de mil maneiras pela grandiosa literatura de ficção, o romance picaresco, as novelas e os entreatos, as comédias, os caprichos satíricos. Sob a cobertura ambígua da ficção, por desvios freqüentemente muito sutis, o grande escritor denuncia, sugere, instiga, sem decidir, sem se impor. Raramente a função satírica - aquela que conduz o imaginário do leitor a enfrentar as próprias responsabilidades morais - foi exercida tão intensa e amplamente, e de uma maneira assim diversificada, por uma literatura maior. As duas figuras mais célebres que nos restam, as do pícaro convertido e do hidalgo decaído, como o Dom Quixote, sublimam alguns problemas essenciais da sociedade da época.

A alta aristocracia dos títulos - duques, marqueses, condes -, encimada pela superelite dos "grandes", uma invenção da Corte de Borgonha, curva-se ainda ao modo de vida que lhe impuseram os Reis Católicos no final do século XV, após décadas de violências clânicas. Ela permanece ao pé do trono, aparentemente tolhida, longe de seus imensos territórios, talvez menos negligenciados e mais rentáveis do que se imagina. Alguns nomes de peso, em Castela e Andaluzia, especulam discretamente sobre as exportações de lã ou sobre o fornecimento de gêneros como azeite, vinho, couro para as colônias. Mas à menor veleidade política na Corte sobrevém a eliminação gloriosa via nomeação para cuidar de uma embaixada no estrangeiro ou de um vice-reinado nas Índias, tudo por conta do titular.

Assim, o poder real atua, com elegância, sobre o destino de uma fortuna nobiliárquica eventualmente capaz de cometer abusos. Ele se assegura, no interior, de segurança civil e repercussão cultural, pois cada grande família constrói seu palácio nas cidades-Corte, e de uma incrível reputação de riqueza no exterior. Somente Aragão e Castela fogem à regra. Ali, a violência nobiliárquica, endêmica, é simultânea ao caos que caracteriza o conjunto social. Mas, com relação ao resto da Europa, a Espanha talvez seja a monarquia de tipo absoluto em que a aristocracia levará menos cabeças ao cepo.


Os fidalgos (hidalgos), literalmente "filhos de algo", constituem uma nobreza média e, menos ainda, uma nobreza rural à maneira européia. Eles incham espetacularmente o volume aparente da camada nobiliárquica (10,2%), mas seu "algo embaixo do sol" ligado à evocação imprecisa de um ancestral heróico remete mais ao mito que a uma efetiva propriedade. Mais de um terço deles vive nessas grandes cidades onde Dom Quixote, antes de sua loucura, jamais colocou os pés. No campo, esse fidalgo às vezes se permite labutar discretamente no arado. Essa camada tem como privilégio básico a isenção fiscal sob protesto de seus contemporâneos de todos os matizes. Pela alta nobreza, que eles ridicularizam imitando; pelo Estado nascente, que está à caça de novos contribuintes; e pelo campesinato e o artesanato comercial urbano, que vê sua parcela fiscal inchar por culpa do grande volume de isentos. Daí a caricatura cruel que caracteriza o hidalgo literário, entre eles o terceiro mestre de Lazarillo e Dom Quixote.

A melhor sorte, para o fidalgo, se ele não tivera a modéstia e os meios de fazer estudos literários ou de se exilar nas Índias, é abraçar, como simples soldado do rei, a carreira das armas. Uma vantagem imensa para a Espanha belicosa, que assim disporá do único exército mercenário europeu com um espírito de combate realmente patriótico. Fora esses três meios de sobrevivência, e se não teve a chance de ser o primogênito e poder vegetar sobre um patrimônio inalienável , o "filho de algo" não tem muita coisa. Ele nem se casa, de maneira que contribui para o despovoamento que tanto preocupava os arbitristas.


A burguesia talvez não esteja tão ausente do quadro. Primeiro, uma grande parte da população inativa - nobres, clérigos, parasitas de toda sorte - se fixou nas cidades excepcionalmente populosas de Castela. O núcleo antigo da burguesia propriamente dita é constituído, após a expulsão de 1492, de numerosos judeus dos quais a abjuração religiosa tirou o direito de permanecer em sua pátria. Isso explica, por um lado, o mal-estar existencial do burguês convertido e o clima de hostilidade popular que o cercará durante décadas. Eles produzem riquezas tradicionais de Castela, como o trigo, e exploram as vias naturais do comércio transoceânico e da produção proto-industrial.

Nas estradas de Castela circulam caravanas de mulas vindas da Segóvia, que abastecem de tecidos de lã a corte de Londres, e de Toledo, calçados para o rei da França. E, sob o controle atento, mas útil, do grande sindicato de criadores, a mesta, um verdadeiro Estado dentro do Estado, a lã bruta escoa das casas de sapé de Castela, assim como o trigo para os portos cantábricos e bascos. À sombra de Inácio de Loyola, de madre Teresa de Jesus e do doce "irmãozinho" Juan de la Cruz, há oficinas e greves.

Vale questionar de onde vêm o malogro final, a proscrição coletiva dos valores morais do lucro, da poupança, da técnica, do trabalho. E também de onde vêm a falta de passarelas sociais, a nitidez do bloqueio, a evidência do preconceito antiburguês que tantas testemunhas da época denunciam. Muitas interpretações se oferecem ao historiador, pouco sustentáveis por falta de lastro documental - espera-se muito da apuração modernizada dos arquivos notariais. Cada um deles comporta sua parcela da verdade. Mas há algumas pistas.

Primeiro, a desvantagem adquirida. A Espanha não se tornou uma colônia do comércio exterior depois da prosperidade americana. Os italianos estavam em Sevilha séculos antes da abertura do monopólio da Casa de Contratação. Ao menor solavanco nos negócios, são seus testas-de-ferro castelhanos que sofrem por eles, numa cascata de falências. A outra herança negativa talvez derive dos efeitos perversos da exigência de qualidade que os Reis Católicos impuseram à nascente indústria castelhana. Concebida para compensar um certo atraso tecnológico, essa busca de excelência vira obstáculo diante dos assaltos comerciais da pacotilha têxtil francesa, inglesa e flamenga. Os flamengos, concidadãos dos castelhanos no seio da Monarquia, lhes devolvem produtos caros, sedutores e perecíveis, fabricados com sua própria lã.

O rei continua surdo ao clamor protecionista peninsular porque seus súditos distantes estão particularmente agitados, sua fidelidade é estrategicamente necessária e, talvez, porque a dinastia se sinta ainda, sob seu verniz espanhol, um pouco "borgonhesa". O pior, para a indústria e o comércio castelhano, acontece sob o reinado de Felipe III, entre 1598 e 1621, quando as "pazes e tréguas" prematuramente assinadas com os inimigos de sempre colocarão a economia espanhola na dependência de suas "companhias" de comércio. Impopular junto aos contribuintes, que pagam os efeitos das emissões insensatas de moeda ruim, essa política será desautorizada, pois os conselheiros reais percebem o quanto a guerra traz repercussões econômicas favoráveis para a Espanha.


Há, enfim, causas monetárias imprevisíveis no momento da Conquista. A descoberta das Índias Ocidentais, cuidadosamente programada por Castela conforme o modelo português, não trouxe maciçamente gêneros alimentícios novos a preços mais baixos, como esperavam seus iniciadores, nem a abertura para trocas diversificadas. O fluxo metálico, cujas proporções foram absolutamente inesperadas, prima sobre tudo. Varrida de início por esse vagalhão de ouro e de prata, a Espanha se adapta mal. Moeda forte desvalorizada a cada dia, preços e salários altos, tentações do crédito fácil, uma infinidade de rendas precárias e algumas fortunas duvidosas repousando no ar sobre castelos de papel. É o coquetel econômico euforizante no início e, depois, desestruturador, porque entorpece a vigilância e a criatividade internas e excita a cobiça e as especulações estrangeiras.

A inflação desencoraja, pois, os investimentos comerciais e industriais de longo prazo. Mas, contrariamente a uma idéia fácil muito em voga na época, isto não significa que toda prosperidade metálica atravesse a Espanha como se por cima de uma ponte para ir alimentar exclusivamente genoveses, florentinos e burgaleses. A península se aproveita também enormemente, mas à sua maneira. O fluxo metálico, controlado e largamente sugado pelo Estado, vai enriquecer apenas os asentistas internacionais que equipam e subvencionam os corpos de exército em operações externas. O castelhano lúcido queixa-se apenas da forma, ao menos no começo, das "guerras intermináveis" e dos excessos fiscais que elas provocam. Vagamente percebe que elas lhe valem um estado de paz interna sem igual na Europa.

O Estado se permite, graças ao quase infalível fluxo metálico da América, introduzir maciçamente no circuito econômico reconhecimentos de dívidas a preços bons e de longo prazo. Embora magros, os lucros desses "juros" são, às vezes,a única fonte de renda de uma vasta clientela de ociosos, viúvas, órfãos, que subsistem sem entrar no ciclo da produção. Na outra extremidade, a alta nobreza, escaldada pela inflação, não investe e alia senso securitário e gosto pelo suntuoso, entesourando um volume considerável de metais preciosos na forma de objetos de luxo. Por suas necessidades imediatas, a nobreza se endivida, pressionando a inflação, e deixa no caminho uma nuvem de modestos criadores não reembolsados. Estes também não encontraram uma melhor maneira de investir.

A outra forma de investimento de risco, em que mal se distingue a parte sublime do sentido de "além", do desestímulo econômico, é o que ousamos chamar de renda espiritual. Fortunas inteiras legadas a um grande hospital (como a do célebre negociante Simón Ruiz, descendente de judeus convertidos) ou, mais freqüentemente, doações modestas para financiar um ou dois leitos para os necessitados são atitudes que proliferam generosamente, mas que inviabilizam a gestão eficiente da assistência pública. Ainda assim, é a maneira mais altruísta de salvar a própria alma.

Outros legam fontes de riqueza para uma paróquia onde serão rezadas missas para o descanso de sua alma, desde que o padre seja da família. Para dotar determinado convento de proventos, fixa-se a condição de que ele acolha, no futuro, parentes em necessidade, celibatárias, viúvas e órfãos. Isso parece preencher o papel de nossos modernos sistemas de seguridade social, mas favorece o colapso demográfico. Tal como o fidalgo, o burguês consegue sobreviver, em Castela. Mas nem sempre pode se dar ao luxo de casar e ter filhos.


Um dos raros investimentos lucrativos, sobretudo na metade do século XVI, é ainda o saber. Saber de Deus, em primeiro lugar. As grandes universidades - Salamanca, a antiga, maciçamente freqüentada, Alcalá, a experimental, mais recente - acabam de forjar a mais humanizada das teologias modernas, aberta aos acontecimentos que sacodem nossa espécie, como a descoberta transatlântica. Nesse país que se suspeitou de racismo, durante o início do século XVI, os mestres esclarecidos e respeitados da investigação teológico-cristã, como frei Luis de Leon (consulte o quadro Interregno forçado), são freqüentemente descendentes da antiga burguesia judia. Que eles tenham trocado o balcão paterno pela cátedra universitária não é, forçosamente, no plano econômico, um bom sinal.

E eles têm como alunos um corpo numeroso de candidatos ao sacerdócio. O que conduz esses jovens aos bancos universitários, em vez da vocação religiosa, é o pragmatismo diante das perspectivas econômicas. Eles também não pretendem se casar. Depois de 1560, com as premissas da crise, eles são os primeiros a querer aplicar em seus confortáveis retiros os estatutos de exclusão que os teriam privado, uma geração antes, dos melhores de seus mestres.

O poder constituído também dava importância à cultura. Os Reis Católicos haviam encorajado a formação de uma casta de funcionários letrados, notadamente juristas, integralmente dedicados ao Estado. Seus descendentes fazem o mesmo, sobretudo Felipe II, cujo senso burocrático, a minúcia escrupulosa e a obstinação pelo trabalho eram muito próximos do estofo desses homens. A venalidade dos ofícios, em princípio não transmissíveis, não teve um papel como na França. Homens enriquecidos alhures não vêm renovar o serviço do Estado. Os letrados dão um jeito de conservar para seus filhos seus cargos cobiçados, mediante pressões sutis. Isso provocará uma degradação qualitativa das universidades ao longo do século XVII, pois a aquisição de um verdadeiro saber torna-se inútil. Essas famílias abandonam progressivamente o serviço do Estado sem jamais ter instituído uma verdadeira nobreza de toga, deixando atrás de si um deserto administrativo. Essa degradação no recrutamento da burocracia não deixa de evocar a do exército, que os fidalgos vão abandonar no século XVII aos desonestos.

Já o camponês, cuja atividade produtora ainda condiciona, na época, o essencial da economia, ainda é mal conhecido, a despeito de uma pesquisa profunda ordenada por Felipe II por volta de 1570. Tudo indica que na segunda metade do século XVI surgiu um grupo novo de "trabalhadores ricos" que aproveitou a explosão da demanda americana por gêneros alimentícios, ousando empreender a exploração das terras abandonadas ou protegidas pela tradição comunitária medieval. Há quem cogite que eles talvez tenham comprometido um antigo equilíbrio, provocando o esgotamento posterior dos recursos.

Pode haver outras explicações para a crise agrária denunciada principalmente a partir de 1620. Como no resto da Europa, parte da responsabilidade cabe aos especuladores, muitas vezes agentes da burguesia industrial urbana. Existe, sobretudo, a pressão tentadora dos poupadores tímidos e desanimados que perseguem o investimento medíocre, mas seguro, da renda perpétua agrária. Endividado, o camponês inclina-se a largar tudo, a emigrar para as Índias ou para a cidade, e aceita ingressar na carreira militar. Também os casamentos são raros.

O campo castelhano é singular, na Europa, por sua paz social; ocorrem poucas revoltas antes do período entre 1632 e 1640. O rei não necessita manter forças armadas de contenção ou de repressão em Castela. Ao mesmo tempo, a cultura camponesa exerce sobre os citadinos uma espécie de respeitosa sedução. Daí surge o imortal Sancho Pança e, no teatro, pais e maridos cuja rusticidade digna oferece um modelo de virtude moral, em oposição aos descalabros dos nobres de sangue.

Para completar o quadro, é preciso acrescentar que a Espanha do século de ouro é eminentemente cosmopolita, graças às realidades e às miragens da prosperidade americana. Em Sevilha, escravos dançam com ritmos africanos. Nas estradas, encontra-se o mascate do Alverne acusado de sugar o ouro do Peru. Quanto aos mouriscos, espanhóis há séculos, seus costumes são pouco aceitos. Serão expulsos em 1610. Foi uma hemorragia voluntária de 300 mil camponeses e artesãos muito ativos, mas o efeito não parece ter sido catastrófico.

Finalmente, o clero dessa Espanha está distribuído de maneira correspondente aos desequilíbrios do conjunto da sociedade. Há franciscanos incultos, cônegos faustosos e heróis incontestes de Deus, despojados de qualquer veleidade terrestre. Também urbanizado, irradia um brilho cultural extraordinário. Entre eles há poetas e também autores de teatro, como Lope Félix de Veja Carpio, que lota todos os dias os teatros com um público insaciável. Preocupada com a própria improdutividade, a sociedade espanhola talvez tenha passado ao largo das verdadeiras prosperidades. Mas nenhuma rival de seu tempo insuflou tanto charme, encantamento, inventividade em sua produção cultural.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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