segunda-feira, 23 de março de 2009

Caneca, nosso primeiro padre guerrilheiro

Frei Joaquim do Amor Divino Caneca levou o liberalismo aprendido no Seminário de Olinda às últimas consequências. Contra o autoritarismo de d. Pedro I, pegou em armas, e pagou com a vida pela rebeldia
por Ricardo Maranhão

Nenhum carrasco habilitou-se a executá-lo. Nem mesmo em troca da liberdade, presidiário algum aceitou a tarefa. A execução de frei Caneca (detalhe), óleo de Murilo la Greca


Cadeia pública do Recife, 10 de janeiro de 1825. Um homem é condenado à forca, em sentença lavrada por comissão militar nomeada pelo imperador d. Pedro I. A forca está levantada no patíbulo, o condenado já rezou, já se confessou, já adquiriu a serenidade diante do inevitável. Só falta o carrasco.

A autoridade militar está em busca de um carrasco, que não aparece, pois não há quem queira executar aquele condenado. Manda-se chamar um preso comum, um mulato recrutado às pressas com promessas de benefícios. Mas o mulato não quer enforcar o condenado, mesmo sofrendo ameaças e sendo espancado a coronhadas pela soldadesca.

Nos dias 11 e 12 a tensão da espera continua. Mais um negro, igualmente espancado, e mais outro, igualmente torturado, se recusam a enforcar aquele homem que espera em sua cela. Do lado de fora da prisão, muita gente pede clemência para o condenado. Petições, passeatas de ordens religiosas, nada demove a vontade imperial de executar aquele homem querido e respeitado, e não há carrasco disposto a enforcá-lo. Trata-se do revolucionário liberal Frei Joaquim do Amor Divino Caneca.

O PANFLETÁRIO

Nascido em Recife em 1799, de origem humilde, Joaquim do Amor Divino vendia canecas nas ruas do Recife quando garoto, daí a origem de seu nome eclesiástico quando se tornou frade carmelita. Educado no Seminário de Olinda, centro de difusão de idéias liberais, tornou-se um dos mais combativos lutadores pela independência e pela república nos anos de 1817 a 1824.

Caneca participou da revolução de 1817, momento decisivo da efervescência política do Nordeste pré-independência, e amargou anos de cadeia por isso. Libertado em 1821, no bojo da luta final pela independência, concretizada no ano seguinte, como inúmeros políticos brasileiros ele passou a concentrar sua atenção na discussão do projeto da Carta Constitucional do nascente Estado.

NO RECIFE, AS TROPAS INGLESAS MASSACRARAM INDISCRIMINADAMENTE A POPULAÇÃO E INCEDIARAM PARTE DA CIDADE

Mas, depois de nove meses de trabalhos que agitaram o ano de 1823, a Assembléia Constituinte, que daria forma ao regime brasileiro, foi fechada por d. Pedro I, numa crescente afirmação de autoritarismo. As vozes de protesto contra a arbitrariedade ecoaram por todo o país, principalmente no Nordeste. Ali, o fogo revolucionário aceso em 1817 havia deixado fortes brasas, estimuladas novamente pelo gesto do imperador.

Durante 1823 e 1824, em Recife, vibrou nos ânimos populares a ação de dois jornalistas - ideólogos do movimento -, Cipriano José Barata e Frei Caneca. Em seu jornal Tífis Pernambucano, cujo primeiro número data de 25 de dezembro de 1823, Caneca analisava com ácidas críticas os recentes atos do imperador, e conclamava os pernambucanos à revolta.

Imposta ao país, em 1824, a nova Constituição Imperial outorgada, recusaram-se as Câmaras de Olinda e Recife a lhe prestar juramento. Entre os votos contrários à aceitação da Carta encontrava-se o de Frei Caneca, por considerá-la iliberal e contrária à liberdade, independência e direitos do Brasil. Para ele, a Carta tinha sido apresentada por quem não tinha direito de fazê-lo, na medida em que toda constituição deveria exprimir um pacto social entre governantes e governados.

Quando Recife, em março de 1824, se encontrava bloqueada por navios de guerra comandados por John Taylor, como um ultimato aos pernambucanos para aceitação das medidas intervencionistas de d. Pedro na presidência da província, Caneca denunciava: S.M. está tão persuadido, que a única atribuição que tem sobre os povos, é esta do poder da força, a que chamam outros a última razão do Estado, que nos manda jurar o projeto com um bloqueio à vista, fazendo-nos todas as hostilidades .

Antecipando as prerrogativas estabelecidas na Carta outorgada, d. Pedro, dado o clima de revolta na província, havia nomeado um elemento de sua confiança, Francisco Pais Barreto, em substituição ao governante provisório, Manuel de Carvalho Pais de Andrade, apoiado pelo povo. Negando-se a aceitar a substituição, Pernambuco rompeu com o governo central: em 11 de junho, Taylor retirou-se com seus navios, e em seguida Pais de Andrade, livre da ameaça direta, proclamou a Confederação do Equador.

A organização da Confederação do Equador como novo Estado, desvinculado do Império, procuraria seguir as linhas do modelo americano: deveria aglutinar as províncias do Norte, sob a forma federalista, com um governo representativo e republicano. Assim sendo, uma das primeiras preocupações do governo rebelde era a adesão das províncias vizinhas: com apoios no Rio Grande do Norte e no Ceará, os revolucionários passaram a recrutar simpatizantes e adeptos na Paraíba, no Maranhão, na Bahia e em Alagoas.

Caneca logo passou a organizar um projeto de Constituição a ser discutido na Assembléia Constituinte da Confederação. Mas a importância de seu papel revelou-se no movimento de 1824 como secretário do governo revolucionário, líder popular e capitão de guerrilhas, pois a rápida reação repressiva do Império exigiu a suspensão dos trabalhos constitucionais e todo o empenho na resistência a d. Pedro.

O GUERRILHEIRO

Na Carta Régia de 25 de julho de 1824, o imperador suspendeu os direitos e liberdades individuais nas províncias rebeladas, declarando-as em estado de sítio, e determinando a criação de tribunais militares, presididos pelo brigadeiro Francisco de Lima e Silva, para julgar sumariamente os cabeças do movimento.

Contando com fundos reduzidos, d. Pedro financiou a repressão com empréstimos e tropas mercenárias do exterior, principalmente da Inglaterra. Em 2 de agosto de 1824 zarpou do Rio de Janeiro uma divisão naval da esquadra South American Station comandada por Lorde Thomas Cochrane, responsável pela ofensiva marítima, conduzindo uma tropa terrestre de cerca de 1.500 homens, chefiada pelo brigadeiro Lima e Silva. Cochrane e Lima e Silva receberam instruções radicais: que não se aceitasse capitulação e que os rebeldes fossem condenados à morte.

Em Pernambuco, onde se concentravam as maiores forças confederadas, o bloqueio marítimo começou em 19 de agosto, enquanto as tropas de terra, já unidas com as forças pernambucanas, se encaminhavam para o Recife, onde conseguiram penetrar em 12 de setembro de 1824. As tropas confederadas, vencidas, retiraram-se para Olinda. Alguns dias depois, aceitaram uma capitulação cujos termos não foram respeitados. Enquanto isso, em Recife, as forças inglesas usavam de extrema violência, incendiando grande parte da cidade, saqueando casas e massacrando indiscriminadamente a população. No dia 17 de setembro, Lima e Silva já dominava totalmente a cidade.

A resistência, no entanto, continuaria sob a forma de luta guerrilheira no interior. Frei Caneca e Agostinho Bezerra Cavalcanti, entre outros, organizaram a Divisão Constitucional da Confederação do Equador e saíram de Olinda para se juntar aos cearenses do general Filgueiras. Durante três meses percorreram as províncias vizinhas em combates de guerrilhas.

Nesse movimento, a adesão da população local era decisiva, e Caneca pode contar com ela num primeiro momento. Entretanto, uma parcela dos aliados da Confederação afastou-se rapidamente, pois o governo revolucionário havia decretado a abolição do tráfico negreiro no Recife, descontentando os grandes proprietários de terras. Registraram-se algumas batalhas, mas não ocorreu o encontro com os reforços de tropas cearenses, pois o general Filgueiras, seu chefe, tinha sido obrigado a render-se em novembro.

Finalmente, cansados da longa jornada, e com os batalhões minguados pelos combates, a divisão guerrilheira rendeu-se no Ceará, em 29 de novembro de 1824. Os chefes, como Frei Caneca e Agostinho Bezerra, foram levados de volta ao Recife, para julgamento e execução.

A aura mística de popularidade de Caneca, entretanto, quase punha abaixo os planos repressivos. Enquanto se preparava sua morte, muitos outros líderes revolucionários, em diversas províncias, eram executados. Mas as horas se arrastavam desde o dia 10 de janeiro, quando foi lida a sentença, e ninguém queria executar o religioso.

Finalmente, na madrugada do dia 13, a sentença foi reformada, a condenação do revolucionário passou a ser o pelotão de fuzilamento. Impessoal, o ato de cada soldado do pelotão era mais viável, e mesmo assim há relatos no folclore pernambucano sobre um mal-estar terrível de um dos executores no momento da fuzilaria. Caneca, de cabeça levantada, recebeu as descargas. Seu corpo sem vida foi levado para o convento dos carmelitas, onde foi enterrado. Com ele, uma parte importante do ardor radical liberal do início do século XIX.

Ricardo Maranhão é historiador. O autor recorreu ao artigo A Confederação do Equador, de Maria Cristina Cortez Wissenbach, in História Texto e Consulta (Editora Brasiliense, 1977)

Revista Historia Viva

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