segunda-feira, 16 de março de 2009

Flor da negritude

Criado para o lazer de uma elite étnica, o Renascença Clube buscou novas formas de participação social para a população negra do Rio de Janeiro
Sonia Maria Giacomini

A julgar pelo depoimento de alguns veteranos, no Rio de Janeiro dos anos 1950 os negros não tinham vez quando se tratava de viver suas relações sociais. “Em quase todos os lugares bons, nos bons restaurantes, nos clubes, quando algum de nós conseguia entrar, olhavam feio, maltratavam, não tínhamos onde nos divertir” – queixa-se o sr. Vítor, maestro de profissão. Conforme sua lembrança, ele, amigos e parentes não podiam circular livremente nos espaços urbanos destinados ao lazer e ao entretenimento. Motivo: discriminação racial.

Os clubes sociais da classe média estavam entre os lugares cujo acesso era particularmente difícil para os negros, embora isso nunca estivesse explícito nos seus estatutos e regulamentos. Foi essa situação deplorável que levou um grupo de pioneiros profissionalmente bem-sucedidos e considerados bem educados – como o sr. Vítor – à decisão de fundar, em 1951, um espaço social próprio, no qual pudessem estar “à vontade”, livres de constrangimentos e pressões raciais. Nascia assim, na Zona Norte do antigo Distrito Federal, o Renascença, “clube social, recreativo e esportivo”, como rezam os estatutos, onde os negros, e não os brancos, é que davam as ordens.

Ao longo de sua história, marcada por momentos de brilho e obscuridade, harmonia e dissensões, o Renascença Clube se norteou por diferentes projetos e estilos. Sucessivas gerações de sócios pensavam, naturalmente, de maneira diferente, e viram o espaço social do Renascença como palco para diferentes funções. Nessas várias etapas, variaram também, entre diretores e associados, as maneiras de perceber a condição do negro na sociedade brasileira – particularmente a carioca. Afinal, havia perguntas básicas difíceis de responder, e era das respostas que dependia o destino da associação. Que tipo de relações os negros devem estabelecer entre si? Que tipo de relações os negros devem estabelecer com os brancos? Como a classe média negra poderia se afirmar numa sociedade que, de modo geral, reserva para os negros os degraus inferiores da escala social e, em conseqüência, associa-lhes valores, comportamentos, estereótipos próprios de uma condição subalterna? Estas foram as grandes questões, enfrentadas de diferentes maneiras ao longo da história do clube.

Nascido numa casa antiga, pequena, com grande quintal arborizado, localizada no subúrbio de Lins de Vasconcelos, o Renascença Clube foi fundado por 29 sócios, todos negros. Um projeto de ascensão social parecia implícito desde o começo: não foi por acaso que escolheram como símbolo do clube a flor-de-lis, que, segundo o Dicionário Aurélio, é “ornamento heráldico em forma de um lírio estilizado, distintivo da realeza na França”. Nessa época, é a família que domina o clube. Buscava-se instaurar, por meio do Renascença, um campo de relações em que os filhos de famílias negras bem-sucedidas pudessem encontrar pessoas consideradas do mesmo nível social e cultural, para fins de amizade ou casamento.

Nas atividades culturais desses primeiros tempos, destaca-se o cuidado com o aprimoramento dos sócios e a divulgação de certos padrões da cultura clássica ou erudita. Segundo a memória de uma das fundadoras, dona Lucília, eram comuns, então, audições e palestras sobre música e literatura: “Os sócios se reuniam de tarde e, quase que nos moldes dos antigos clubes literários, ouvíamos música clássica, Brahms, Bach, Mozart. Tínhamos no clube muitos músicos, maestros, e também chás e saraus com declamação de poesias”.

Com o passar do tempo e o aumento do número de sócios e freqüentadores, também começaram a ser promovidos grandes bailes. Realizados na sede de conhecidos clubes da cidade (Monte Líbano, Sírio e Libanês, Flamengo) ou nos prestigiosos salões do Hotel Glória, locais de preferência da elite branca, esses eventos são lembrados, nas entrevistas dos primeiros sócios, como momentos de distinção, elegância e bom gosto. Os homens usavam trajes obrigatoriamente formais, flores na lapela, às vezes de summer ou até de fraque. As mulheres se vestiam com muitas sedas, cetins e rendas, não esquecendo as luvas e os chapéus. Fazia-se tudo conforme cânones, convenções e estilos adotados pelas “pessoas de nível que freqüentavam os bons clubes, como o Tijuca, o Grajaú, o Fluminense”, diz dona Lucília.

O Renascença dos seus tempos de flor-de-lis pode ser entendido, portanto, como o projeto de uma elite negra em busca de afirmação social. Para livrar-se do estereótipo negativo, buscava-se a todo custo um estereótipo positivo: negro, porém culto e refinado; negro, porém com família organizada; negro, porém sóbrio e relativamente próspero. Coincide com a mudança da sede do Lins de Vasconcelos para o Andaraí uma série de transformações na composição e nas atividades do clube. Emerge, aos poucos, um novo projeto: em vez de tentar aproximar-se do modelo dos clubes de classe média, o Renascença passa a acolher, na condição de anfitrião, ricos e famosos, a intelectualidade, os bem-nascidos, o pessoal da Zona Sul que se espreme na disputa pelo acesso a eventos que agora promove, como shows e rodas de samba. Muitas vezes esses recém-chegados se tornam sócios, o que desagrada aos mais tradicionalistas, que viam esses novos fatos como “abertura excessiva” a contrariar a proposta original dos associados. Se despertou críticas, o período também é marcado por uma grande projeção do clube na mídia e pela sua inclusão no circuito dos locais da moda.

Considerado pelos sócios como momento máximo de glória, os anos 1960 e 70 viram o clube integrar-se à geografia da cidade. Para isso contribuiu substancialmente o sucesso das representantes do Renascença em concursos de beleza – Miss Guanabara, Miss Brasil, Miss Universo –, que eram muito valorizados à época. Graças ao sucesso de suas misses nestes concursos, o Renascença passaria a ser conhecido – e reconhecido também por seus próprios associados – como o “clube das mulatas”. Isto foi (e continua sendo) objeto de avaliações contraditórias. A apoteótica eleição de Vera Lúcia Couto, em 1964, como Miss Guanabara, foi vista por muitos, se não pela maioria dos sócios, como uma vitória da negritude, quase um resultado memorável do esforço coletivo do grupo.

Nesse mesmo momento, porém, uma parte dos dirigentes antigos, descontente com os rumos que o clube tomava, se retira em sinal de protesto. Quando o Renascença encampa as mesmas idéias que os brancos tradicionalmente associam à mulata, pensavam eles, o clube acaba, de certa forma, aderindo à visão comum sobre o lugar e o papel dos negros na sociedade e na cultura nacionais.

Uma nova proposta começara a surgir no início da década de 1970, abraçada por um grupo de jovens dispostos a resgatar a proposta original e, segundo o associado Francisco, “mudar a imagem do Renascença como o clube das mulatas”. Ele elogia o papel dos mais velhos, mas os critica por terem transformado o Renascença num “clube de que os homens brancos gostam muito, como os portugueses na época das senzalas”. “Ficávamos muito insatisfeitos”, diz Francisco, “quando reparávamos que nossas garotas estavam sendo assediadas por esses brancos que, na verdade, não tinham nada a ver com o clube”. Esse grupo ofereceu à juventude negra novas formas de identificação étnica, encontrando no soul americano o ingrediente cultural – e musical – que daria origem a concorridas festas de jovens realizadas aos domingos.

Considerado não propriamente um ritmo ou gênero musical, mas uma forma singular de interpretar canções, o termo soul é utilizado também para designar aspectos de um ethos inspirado em algumas personalidades negras americanas – Stevie Wonder, Barry White, Ray Charles, James Brown – que exprimiria o sentimento de uma “alma negra”. Este mesmo sentimento foi identificado no personagem Shaft, detetive negro personagem de um seriado americano veiculado à época na TV brasileira. A “Noite do Shaft”, baile realizado todos os domingos, ininterruptamente, durante três anos, é unanimemente apontada como a atividade mais significativa desta fase do clube. Mais que um simples baile, todos se encontravam unidos em torno a uma maneira de ser negro.

Entre o programa inicial do Renascença, em que se escutava Bach e Mozart, e a “Noite do Shaft”, passando pela era das mulatas, percorreu-se um longo caminho. Na primeira fase – dos tempos da aristocrática flor-de-lis –, os associados prezavam valores, como a sobriedade, a condição de status, optando pelo gosto “clássico”, tal como fazia, pensavam eles, a elite branca. Já o segundo projeto representou uma ruptura aberta com aqueles valores iniciais: buscou-se um ideal de integração étnica que incluía uma tentativa de aceitação pelos brancos. Aí assumiu-se o lugar que a sociedade brasileira parece prescrever para os negros, como também o “exotismo” de um espetáculo em que a mulher negra/mulata ocupava um lugar de destaque.

A terceira fase parece ter aberto um novo universo de identidades. De certo modo, ao inspirar-se nos ritmos e nas atitudes dos negros americanos, ela compartilha do projeto original do Renascença, rejeitando o lugar que se pretende tradicionalmente atribuir ao negro no Brasil e seus complementos simbólicos: samba, morro, favela, carnaval. Se nos anos 1950 a referência do Renascença era uma classe média idealizada, por hipótese amante de saraus lítero-musicais, nos anos 1970 busca-se também uma identidade fora dos modelos consagrados.

Os três projetos representam três maneiras diferentes de se viver a condição do negro de classe média na cidade do Rio de Janeiro. O que revelam? Ambigüidade, certamente, como também as intenções de um grupo étnico que rejeita a idéia de conformar-se com os estereótipos. O fato é que as perguntas que os associados formularam no tempo da fundação do Renascença ainda não foram respondidas. São questões em aberto, a serem enfrentadas não só por negros e grupos de negros, mas por toda a sociedade brasileira.

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Sonia Maria Giacomini é professora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio e autora de A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro – o Renascença Clube (Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj, 2006).



SAIBA MAIS:

AZEVEDO, Thales. As elites de cor numa cidade brasileira: um estudo de ascensão social. Salvador: Edufba/Egba, 1996.

COSTA PINTO, Luiz Aguiar da. O negro no Rio de Janeiro. Relações de raças numa sociedade em mudança. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo/Editora 34, 1999.

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