terça-feira, 3 de março de 2009

A Liberação de Paris

Paris em chamas? Não, PARIS ESTÁ EM FESTA !
por Dominique Lapierre
Robert Capa e Henri Cartier-Bresson

Para os mais de 3 milhões de parisienses, aquele momento era o mais extraordinário dos milagres. A Segunda Guerra Mundial, que havia causado tantas mortes e tantas ruínas, tinha poupado Paris.

Para os mais de 3 milhões de parisienses, aquele momento era o mais extraordinário dos milagres. A Segunda Guerra Mundial, que havia causado tantas mortes e tantas ruínas, tinha poupado Paris.

Em 25 de agosto de 1944, perto do momento da sua liberação, a capital francesa saía ilesa de um dos conflitos mais terríveis da história. Durante os 52 meses em que estivera ocupada pelos nazistas, a cidade passou por muitos sofrimentos, mas não havia perdido sua alma.

Naquele verão, os parisienses ficaram na cidade. Como a guerra arrasava a França, poucos arriscaram deixar seus lares rumo à praia ou ao campo. Às margens do Sena, milhares de pessoas se bronzeavam, transformando-o na maior piscina do mundo. Não havia ônibus nem táxi. O metrô fechava entre 11 e 15 horas, de segunda a sexta, e o dia todo, aos sábados e domingos. A bicicleta e a charrete eram as rainhas das ruas.

Paris tinha fome
Com a falta de gás e o racionamento de energia elétrica, as refeições eram preparadas em pequenos fogareiros, cujo combustível eram as pequenas bolas de papel. A população passava fome. Para resistir a essa penúria, Paris se transformou em uma grande aldeia, que despertava todas as manhãs com o canto dos galos. Os parisienses tinham transformado suas casas em verdadeiros galinheiros. Como muitos de meus camaradas, eu criava coelhos no meu quarto. Para alimentá-los, todos os dias, pela manhã, antes de ir à escola, eu arrancava alguns tufos de grama nos jardins públicos de meu bairro.

Uma nova placa de sinalização acabava de ser posta nos principais cruzamentos da cidade: "Para o front da Normandia" (Zur Normandie Front), indicava. Mas esse era um destino pouco provável. A maioria dos comboios militares seguia na direção oposta. Na saída da escola, nosso passatempo preferido era o de contar o número de veículos - havia até carroças entre eles - que protagonizavam aquela cena de fuga. Os caminhões transportavam os nazistas que haviam ocupado a cidade por quatro anos. Em pé, da carroceria, "camundongos cinzas" choravam e agitavam seus lenços. Homens gritavam que voltariam antes do Natal. Nessa multidão de retirantes encontravam-se também os colaboradores franceses. Eu vi a dona da mercearia de nossa rua subir em um desses veículos. Durante todo o período da ocupação nazista, ela havia servido prioritária e gratuitamente os militares alemães que habitavam o bairro. O mais espantoso era a gigantesca mudança que acompanhava a partida de cada um deles. Nos caminhões repletos, Paris se esvaziava. Eram carregados tapetes, móveis, telefones, postos de rádio. E o que os alemães não podiam levar, queimavam. O céu da cidade escurecia rapidamente com uma fumaça negra que espalhava as cinzas de toneladas de arquivos e documentos.

Para a população da capital, essa agitação era o sinal da iminente retirada das forças alemãs. Desde o dia 15 de agosto, bandeiras francesas - e dos aliados - começavam a ser hasteadas nas janelas. Essa manifestação prematura despertou a cólera dos ocupantes ainda presentes. Como represália, patriotas foram sumariamente executados. Os alemães ainda eram poderosos, como não tardariam a descobrir os resistentes que, em 19 de agosto, desceram às ruas para persegui-los. Os revoltosos parisienses ignoravam que, em seu quartel-general da "toca do lobo", na Prússia oriental, Adolf Hitler anunciava a sua decisão de lutar por Paris. Se necessário, ele a reduziria a "um monte de ruínas".

General von Choltitz
Vinte anos depois, quando Larry Collins e eu iniciamos as pesquisas para o nosso livro Paris brûle-t-il? (Paris está em Chamas?), encontramos o general Dietrich von Scholtitz em sua modesta residência na cidade alemã de Baden-Baden, próxima a Sttutgart. O homem a quem Hitler tinha confiado em 7 de agosto de 1944 a missão de executar suas terríveis vontades desfrutava sua aposentadoria.

Em nossas conversas, descobrimos que o comando alemão enviara reforços de artilharia e unidades de demolição encarregados de explodir as pontes da cidade e muitos imóveis industriais na região parisiense. Duas divisões blindadas, a 25a e a 26a Panzer, assim como o morteiro Karl, um artefato medonho do qual Choltitz já havia feito uso para arrasar Sebastopol, na Rússia, estavam a caminho da capital. Paris corria o risco de conhecer o inferno. Pudemos reconstituir minuciosamente o aterrorizante suspense vivido nessas horas, quando os parisienses pareciam destinados ao apocalipse. Por que este caos não aconteceu?

Há, sem dúvida, muitas razões. Uma das mais interessantes pareceu-nos vir de uma análise aprofundada da personalidade do general alemão. Choltitz havia acabado de retornar da Normandia, onde assistiu impotente ao massacre de seus soldados pelo dilúvio de fogo dos blindados e dos aviões aliados. Seu breve encontro com Hitler, em 7 de agosto, na "toca do lobo", colocou-o diante de um homem absorvido por um surto megalomaníaco. O militar havia ido se encontrar com um líder, mas deparou-se com um doente. Essa decepção teve papel decisivo em seu comportamento.
De todas as cenas que nos propusemos a reconstituir, uma das mais interessantes aconteceu na manhã de 16 de agosto. Aterrorizado pelos relatórios que recebia, segundo os quais os alemães estariam arrasando diversos monumentos como o Senado, a Câmara dos Deputados e a Torre Eiffel, o prefeito de Paris, Pierre Taittinger, telefonou para o Hotel Meurice, na rua de Rivoli, onde estava abrigado o QG do general Dietrich von Choltitz. Taittinger queria ter urgentemente uma audiência com o comandante da "Gross Paris", a Grande Paris, como foi chamada a cidade durante a ocupação nazista. Enquanto o francês procurava convencer o prussiano a poupar sua cidade, Choltitz foi acometido por uma violenta crise de tosse - ele sofria de asma. Quase sufocado, ele se levantou e conduziu o seu visitante para o balcão de seu escritório.

Do local, o admirável panorama que se estendia sob seus olhos dava ao francês os argumentos de que precisava. Apontando para as torres de Notre-Dame, a cúpula do Panteão, a Torre Eiffel, ele lhe lançou um apelo. "Os generais têm com freqüência o poder de destruir, raramente o de edificar", declarou. "Imagine que, um dia, o senhor volte aqui como turista, contemplando de novo todos estes testemunhos de nossa história, e possa dizer: \\'Fui eu, o general von Choltitz, que um dia poderia tê-los destruído, que os conservei, como um donativo à humanidade\\'. General, isso não vale toda a glória de um conquistador?", concluiu. O alemão permaneceu mudo por um momento. Depois, voltou-se para Taittinger. Com uma voz lenta, articulando bastante suas palavras, lhe respondeu: "O senhor é um grande advogado por sua cidade, e fez o seu dever. Eu, como general alemão, devo fazer o meu".

Na véspera desse encontro, após uma inspeção em suas forças, o comandante da "Gross Paris" teria pedido que seu chofer o conduzisse aos Champs-Elysées para uma surpreendente atitude. No alfaiate Knize, ele comprou um grande sobretudo; encontrei a fatura dessa compra com sua antiga, em Munique.

Perguntamos a ele, naturalmente, o porquê da compra do casaco em pleno verão. Ele nos confessou que temia o rigor do próximo inverno, o que provava que ele não tinha nenhuma intenção de executar as ordens de Hitler. Vinte anos depois, Uberta von Choltitz, a esposa do general, mostrou-nos orgulhosamente esse traje, que ela tinha conservado com muito cuidado. Costurado no bolso interno, havia a marca Knize - alfaiate para homens - Paris, Londres, Berlim, e a data de 15 de agosto de 1944.

Numa rica propriedade às margens do Tegernsee, lago situado perto de Munique, encontrei-me com o homem que nos inspirou na escolha do título de nosso livro Paris brûle-t-il? (Paris está em chamas?). O jovem general Walter Warlimont era, em agosto de 1944, chefe do Estado-maior adjunto do OKW, o exército alemão. Por força de seu estatuto, ele assistiu às duas conferências estratégicas de Hitler em sua "toca do lobo". Warlimont teria descrito em seu diário os acontecimentos desses dias cruciais.

Nele, pude ler as seguintes linhas, referentes ao dia 25 de agosto de 1944: "São pouco mais de 13 horas, quando tem início a conferência. Diante do Führer está o relatório das operações do grupo de Exércitos B, que anunciava a chegada das forças aliadas ao centro de Paris. Diante dessa notícia, Hitler grita que é inconcebível a entrada do inimigo na capital com tamanha facilidade. Aos berros, diz ter dado as ordens necessárias para que a cidade fosse aniquilada. \\'Essas ordens foram executadas?\\', pergunta ao general Jodl, chefe de seu Estado-maior. Mais uma vez, ele grita: \\'Jodl, Paris está em chamas?\\'...". O führer não obteve resposta. Todas as comunicações telefônicas e de rádio com Paris tinham sido cortadas. Os carros da 2a divisão blindada do general Leclerc e os soldados da 4a divisão de infantaria americana acabavam de libertar a capital.

A capitulação incondicional
No momento em que Hitler fazia sua pergunta, os soldados de Leclerc invadiam o Hotel Meurice e capturavam Choltitz. O alemão não impôs nenhuma dificuldade para assinar a rendição incondicional da "Gross Paris". Uma multidão em delírio começava em toda parte a invadir as ruas e avenidas para aclamar os libertadores.

Eu consegui escapar à vigilância de meus pais e corri para a avenida Champs-Elysées. Um tanque americano, com uma grande estrela branca pintada no alto, acabara de parar em frente ao Grand Palais. Ao ver um soldado americano, atirei-me em sua direção. Mas, enquanto eu corria, percebi que não saberia o que lhe dizer, pois não falava inglês. Na escola, fomos obrigados a aprender alemão. Chegando aos pés do grande americano, que sorria, subitamente lembrei-me que conhecia pelo menos uma palavra no idioma deles.

E gritei-lhe: "Corned beef ! ". Ele me deu um sorriso e, depois, subiu no tanque, desaparecendo em seu interior. Trouxe-me de volta uma enorme lata de "corned beef", que me deu de presente. E, na verdade, que belo troféu era esse presente para um estudante privado de carne por tanto tempo!

No dia seguinte, sábado, 26 de agosto, meus olhos se encantaram com o mais fabuloso espetáculo que jamais será visto novamente: o desfile triunfal da Libertação na Champs-Elysées, conduzida pela orgulhosa figura de Charles de Gaulle. Um homem cuja voz havíamos escutado por quatro anos sem jamais conhecer seu rosto. Ao longo da mais bela avenida do mundo, a multidão inundou as calçadas, dependurou-se nas árvores, agarrou-se aos lampadários, debruçou-se nas janelas. A passagem do general desencadeou um coro de milhares que gritavam ininterruptamente. Pessoas desmaiavam sob o efeito conjugado da emoção e do sol desse esplêndido dia de verão.
No momento em que de Gaulle e seu cortejo chegaram à praça de la Concorde, ouviu-se um tiro. A esse ruído, milhares de pessoas se atiraram ao solo. Minha mãe me escondeu sob um carro blindado. Nesse instante, o atirador de um tanque mirou seu canhão sobre as colunas da fachada do Hotel Crillon e abriu fogo. Numa nuvem de poeira, a quinta-coluna do edifício veio abaixo. Naquela noite, apoiando-se sobre a torre de seu carro, um jovem soldado americano, de nome Irwin Shaw, escreveu uma carta para a mãe. Sem dúvida, as palavras daquele jovem, que se tornaria um célebre escritor, iriam oferecer uma conclusão ao dia único que ele acabara de viver: "Mamãe, a guerra deve acabar nesta noite".

-Tradução de Wagner Amorosino

Dominique Lapierre é historiador e jornalista.
Revista Historia Viva

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