segunda-feira, 16 de março de 2009

Maldito filho


Denunciado por blasfemar, o escravo Fabrício pagou o preço por não se intimidar diante da opressão que sofria
Luiz Carlos Villalta

Em meio a tantos pecados que diziam existir nos trópicos, uma denúncia de blasfêmia que apareceu no Tribunal da Inquisição em Portugal parecia coisa pequena. Da cidade mineira de Mariana chegou em 1777 uma denúncia contra Fabrício, escravo que servia no Seminário daquela localidade, feita pelo comissário do Santo Ofício no Rio de Janeiro. O escravo reagia à opressão com uma ousadia notável, atingindo tanto seus donos brancos quanto a fé católica. Ele pagaria um preço caro por isso.

Fabrício fora comprado três anos antes no Rio de Janeiro, junto com outros escravos, pelo padre José de Souza, procurador do Seminário. Crioulo, (ou seja, negro nascido no Brasil) natural de Pernambuco, exercia o oficio de barbeiro. Em Mariana, trocaria esta ocupação pelo trabalho pesado das lavras. Ao que parece, quando foi adquirido, trazia a fama de ser “ruim”. O denunciante afirmava no processo que o Dr. Francisco Xavier da Rua, reitor do Seminário, mimara “tanto” o escravo, que “a má criação que lhe deu o fez inteiramente rebelde e levantado”. Fabrício não estava habituado ao tipo de castigo, bastante severo, que receberia por causa de “sua maldita e depravada língua”. Durante o tempo em que esteve no Seminário, ele foi tratado com complacência pelos seus donos. Nada de grandes surras: para repreender o negro, o Dr. Francisco costumava aplicar-lhe castigos moderados.

Desta vez, porém, Fabrício havia excedido todos os limites, revoltando-se contra aqueles que lhe davam ordens e, pior ainda, blasfemando contra a religião católica. A dura punição foi conseqüência de vários atos de rebeldia protagonizados pelo escravo. Segundo os autos, tudo começou quando, encarregado de “preparar o refeitório”, Fabrício, “mostrando repugnância forte em obedecer, com efeito, se incumbiu dele com tanto desmazelo que até chegou a sair para fora de casa, e veio depois de jantar, sem ter d’antes aprontado o que era necessário, e ele tinha a seu cargo”. A esta primeira desobediência se somaria outra: foi-lhe ordenado que trouxesse água para os seminaristas, o que “ele não quis fazer dizendo que nunca lavara os pés aos brancos, e ralhando com outras petulantes, e atrevidas palavras”. Naquele fatídico dia, parece que ele estava decidido a não se sujeitar a qualquer opressão.


E não foram apenas essas as infrações de Fabrício. Ele havia matado aulas no Seminário: um estudante ensinava “a doutrina aos Escravos todas as noites, [mas] em duas ou três noites não apareceu o Fabrício”. Sendo chamado pelo estudante por três vezes consecutivas, o crioulo “não quis obedecer, picado, talvez do mesmo estudante, que fazia as vezes de Procurador, o mandar levar água aos seminaristas”. O estudante, então, mandou que Fabrício fosse amarrado para pagar por suas infrações e sua desobediência. Sua pena seria o açoite, ao que o escravo resistiu bravamente, “forcejando quanto pôde por ver se podia fugir das mãos de outros negros que o prendiam, já desenganado de que não escapava”.

A parte mais grave das faltas do escravo, porém, ainda estava por vir. O fato é narrado no processo pelo denunciante: “Já amarrado a uma escada rompeu nestas abomináveis, e execrandas maldições: ‘Maldita seja quem me pariu. Maldita seja Maria Santíssima, que se ela não fora, eu não viria as Minas. Maldito seja o Padre Eterno, maldito seja o Filho, maldito seja o Espírito Santo’. Cujas maldições foram proferidas antes de principiarem os açoites, e só tinha o motivo de ter os pulsos muito apertados porque como andou lutando, foi amarrado violentamente [...]. Estas blasfêmias foram acompanhadas de outras imprecações [ou seja, pragas] contra si próprio, dizendo que viessem os diabos, e em corpo e alma o levassem aos infernos, que ele não queria já ser filho de Maria Santíssima, pois que ela o tinha desamparado na ausência do seu senhor Francisco Xavier da Rua [o antigo reitor]”.

Fabrício foi açoitado mais de cinqüenta vezes. Sua ousadia impressionou os algozes que o torturavam: antes e depois do castigo, estando ele acorrentado nu, “não tendo mais que umas ceroulas vestidas, e fechado em um cacifo [pequeno aposento], continuou a blasfemar, e imprecar-se a si mesmo, e rogando pragas a quem o mandou castigar, até chegou a ameaçar”. Depois disso, Fabrício foi levado a uma lavra, onde estaria trabalhando à época da denúncia, com uma corrente ao “pescoço, ferros e cepo aos pés”. Os graves pecados o fariam perder quase tudo o que tinha: seus pertences foram “repartidos pelos outros escravos, ficando ele só com umas ceroulas, e um jaleco e uma baeta [tecido felpudo de lã ou algodão] de outro escravo”. Fabrício, que antes costumava andar “com vestidos mais próprios de branco, do que de negro”, sofreu um severo castigo e foi humilhado diante de seus semelhantes.

No fim do processo, o denunciante formulava sua hipótese: “Este negro é demasiadamente ladino [ou seja, conhecia bem os costumes locais], e por isso não é de crer que estivesse desesperado, mas sim que se fingisse como único meio que lhe restava, para ver se assim escapava ao castigo”. Não é possível garantir a veracidade de todas as informações contidas na denúncia, mas pode-se extrair dela algumas conclusões importantes para a história da escravidão e da educação na América portuguesa. Toda a trajetória de Fabrício revela a complexidade da relação senhor-escravo, que não pode ser simplificada pelo modelo dominador versus dominado, sujeito ativo versus sujeito passivo.


Para seus senhores, os escravos eram um misto de pessoa, propriedade e mercadoria: gente e coisa, como definiu o historiador Jacob Gorender. Como propriedade-coisa-mercadoria, eram transmitidos hereditariamente, vendidos, deslocados no espaço e nas funções que exerciam. Reconhecidos como “pessoas” aos olhos da lei e da Justiça, os negros tinham que responder por seus atos, sendo submetidos a castigos e despojados de seus bens quando se rebelavam, praticavam crimes, ou quando agiam contra seus senhores.

O escravo Fabrício não era um sujeito passivo, e o seu cotidiano não era apenas o castigo. Em geral, a relação senhor-escravo era uma correlação de forças, de modo que o lado mais fraco, o escravo, não era desprovido de poder. Tratava-se de uma relação que se transformava ao longo do tempo, pendendo para um dos lados de acordo com o poder que cada um conquistava. O escravo não podia ser resumido a um tipo, a uma categoria dotada de um comportamento uniforme e previsível.

Vivendo numa sociedade católica, os cativos deveriam receber os rudimentos da fé. Numa instituição de ensino diocesana, como o Seminário de Mariana, a educação católica era muito valorizada: os escravos recebiam instrução religiosa de um seminarista. Os negros não eram propriamente submetidos à prática pedagógica principal do Seminário ou a um processo educativo formal, mas a uma forma de instrução paralela, diferenciada em relação à dos senhores-seminaristas. Essa prática educacional estava inserida nas hierarquias, nas distinções e nos preconceitos existentes naquela sociedade, submetida a uma monarquia, assentada na honra, em que vigoravam “estatutos de pureza de sangue”.

Dentro do Seminário de Mariana, a desigualdade e as contradições da escravidão se reproduziam: enquanto os homens livres se submetiam a um processo escolar formal, os escravos, cuja força de trabalho permitia aos primeiros prosseguir nos estudos, restringiam-se, em grande parte, a ter algum acesso à doutrina. Homens livres e escravos, professores e alunos, porém, podiam apropriar-se de formas diferentes das instruções distintas que recebiam ou davam. Todos eles eram capazes de tomar esses conhecimentos como ponto de partida para negociar suas relações, fossem elas políticas, religiosas, econômicas ou sociais.
Fabrício, de fato, aos olhos do denunciante – provavelmente um proprietário de escravos – era “ruim” (ou seja, era insubmisso), e toda a sua conduta parece singular se comparada à dos outros escravos. Ele, sem dúvida, havia feito um bom uso de sua habilidade de conquistar, recebendo do reitor do Seminário os “mimos”, a “má criação”, os “castigos moderados”. A forma diferenciada como foi criado, com certos privilégios e regalias, o teria levado a não se resignar a obedecer a ordens e a não desempenhar satisfatoriamente as funções que lhe foram atribuídas.


Fabrício não aprendera a se intimidar diante do poder dos brancos. Como não se resignava a obedecer calado às ordens, afrontava seus donos e, por tanto despeito, acabou sendo duramente punido.

“Ladino”, ou seja, perfeitamente inteirado das regras e valores do mundo dos senhores, Fabrício talvez tenha tentado fazer um certo teatro com o seu desespero, para com isso safar-se do castigo. Sendo considerado uma pessoa ativa “ruim”, o escravo se recusou a aceitar a ordem para ouvir a “doutrina”. Essa recusa, como o denunciante afirma, somava-se a uma negação à obrigação de curvar-se aos “brancos”, cujos pés, dizia, nunca lavara antes.

Insubmisso, Fabrício se rebelou até mesmo na hora do castigo. Em seu calvário, foi ainda mais longe: refutou, negou e desrespeitou os elementos considerados sagrados pelos brancos, ícones e mistérios da religião católica, blasfemando e desacatando, clamando pelo “demônio” e pelo “Inferno” – o oposto daqueles mesmos elementos sacros. O escravo, assim, levou a resistência ao branco ao seu extremo, negando as verdades que lhe queriam ensinar, das quais certamente tinha um conhecimento anterior, como suas próprias blasfêmias e seus desacatos mostram.

Luiz Carlos Villalta é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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