domingo, 8 de março de 2009

O Brasil é o país da impunidade? - parte 1


"O direito virou um instrumento de luta"
Marcelo Burgos

Vários estudos clássicos tratam do tema da singularidade brasileira, defendendo que a impunidade é uma herança da história colonial, que acabou dando lugar a uma relação mal resolvida entre o plano privado e o público.

A esfera do direito marcada por favorecimentos e privilégios seria quase um vício de origem de nossa formação. Entre diferentes autores, de Oliveira Viana a Sérgio Buarque de Holanda, firmou-se quase um consenso sobre essas conseqüências perversas. O plano público seria poroso a interesses particularistas. Não conseguimos criar um estado de direito universalista, não temos capacidade de construir uma sociedade igualitária, com a lei funcionando igualmente para todos, e ninguém acima dela.

Mas esta mesma bibliografia também aponta algumas mudanças em curso, mas que demandavam processos de longa duração. O próprio Oliveira Viana, ideólogo do Estado Novo, em seu último livro afirmou que não é possível modificar essa cultura política por decreto, por decisão do Estado. Isso pressupõe uma longa transformação, que nos permita viver um dia a cultura democrática, a sociedade igualitária.

A partir dos anos 1970, a modernização do país se deu numa velocidade sem paralelo no mundo. A industrialização e a urbanização transformam a estrutura social, surge uma classe operária urbana mais maciça e a subjetividade burguesa torna-se dominante, a idéia de indivíduo é afirmada. Mas tudo isso em um ambiente que limitava a sociedade de participar ativamente, de exercer direitos civis e políticos. A transformação que houve foi só no plano da economia e da sociabilidade, não no da cultura política.

Por isso a sociedade dos anos 1980 está brutalizada, não tem relação orgânica com o direito e com as instituições, nem poderia ter. Surge então uma nova agenda, e a Constituição de 1988 consegue estabelecer um nexo entre esses três planos: econômico, social e político (que é também jurídico).

A cena contemporânea aponta para uma evidente transformação. E ela vem da Constituição Federal de 1988. Até os anos 1980, nunca tínhamos vivido uma democracia. Em 88, pela primeira vez o país produzia uma Constituição num contexto de maior participação popular. E consciente de que a democracia é algo que ninguém pode ensinar, só se aprende exercitando. Trata-se de um marco valorativo de respeito aos direitos civis e às liberdades individuais, e coloca como meta a construção de uma cultura democrática.

Hoje surgem novos atores, as minorias se mobilizam, começa um processo de decantação da Constituição. O homem comum passa a se posicionar politicamente. Hoje ele anda com a Constituição Federal debaixo de um braço e a Bíblia do outro. Isso é nítido nas falas do sujeito que luta para permanecer na favela e do garoto que defende o baile funk, nas reivindicações dos gays, dos negros, das mulheres, dos deficientes. O direito virou um instrumento de luta, defesa e afirmação de segmentos marginalizados..

É um processo absolutamente novo e inédito no país, que só teve regimes autoritários ou democracias constrangidas. Não quer dizer que já tenha sido capaz de eliminar as marcas que vêm de longe: o direito como instituto de controle e de exclusão social, a serviço de uma sociedade hierarquizada. A democracia não avança por igual em todas as áreas. Uma das áreas de reiteração de padrões que vêm de longe é a Justiça Criminal. Um vestígio disso é a idéia da prisão especial. O sistema criminal precisa se tornar compatível com democracia. É preciso repensar a militarização da Polícia, e também a Polícia Civil, cujo poder ninguém controla.

O próprio Judiciário vinha passando incólume por todo esse processo. Sua participação na Constituição Federal foi corporativista. A reforma do Judiciário e do processo penal é uma dimensão importantíssima. A mudança da cultura jurídica começa pela universidade, nos cursos de Direito. Vinte anos atrás, a impunidade estava muito naturalizada, era aceita tacitamente. Professores de Direito Penal diziam, sem se dar conta da gravidade, que o Código Penal era “PPP”: para preto, pobre e prostituta. Esse cinismo atravessava as instituições todas, e deixou marcas.

A OAB tem um papel ambíguo, resiste às mudanças, age com corporativismo. A transformação na concepção do direito é um processo muito profundo. Mudanças na interpretação da lei, aqui e ali, com a construção de uma nova argumentação jurídica, acontecem no microcosmo de cada caso, de cada processo, pela cabeça de um juiz, de um promotor, pelo tom das ações civis públicas. O STF tem tido um papel interessante. Apesar de nem sempre simpático à opinião pública, como no caso da restrição ao uso de algemas, vem permitindo o avanço da universalização do direito. Tem atuado para colocar limites, preservar a liberdade.

O avanço não é em linha reta, é em zigue-zague. Mas do ponto de vista sociológico — de uma cultura do mundo popular — as reformas são inevitáveis e vêm ocorrendo. A mídia vem confrontando o Judiciário, o Ministério Público e a polícia em nome de ideais de igualdade e transparência. Está disseminado um discurso de horror ao privilégio. Criminosos de colarinho branco hoje estão presos em Bangu 8. Tem banqueiro lá, tem deputado, pessoas que há dez anos jamais se pensaria em prender.

Essa escandalização contra a impunidade só aparece quando está em curso um processo de formação de uma sociedade igualitária. É a afirmação do valor da igualdade no seio da sociedade. A atuação das polícias nas favelas, por exemplo: no calor da hora, a opinião publica acha que tem que ser assim mesmo. Mas quando acontecem chacinas como a do Alemão, no ano passado, há certo consenso de que é inadmissível.

Considero este processo irreversível. A questão é a velocidade com que vai acontecer, e os riscos contidos no que aparentemente é uma virtude. O principal risco é a criação de um estado policialesco, no qual nos tornarmos reféns do estigma contra a impunidade. Liberdade é um direito também. Não podemos viver grampeados, com escutas telefônicas e câmaras em todo lugar. Isso lembra o conto O Alienista, de Machado de Assis: de repente, todo mundo vai sendo preso. O número 2 da Polícia Federal sendo preso pelo número 1. E quem prende o número 1? O presidente da República? É preciso contrabalançar o desejo por justiça com o direito à liberdade.

Revista Nossa Historia

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