domingo, 8 de março de 2009

Trapaceiro como tout le monde

Renegado pela crítica ilustrada, o ator e dramaturgo Vasques fez de Rocambole, herói de folhetim francês, a tradução dos costumes e trapaças da capital do Império
Silvia Cristina Martins de Souza

Um homem de nome Rocambole, tendendo mais para bandido que mocinho, hábil no uso de mil faces e disfarces, mestre em maquinações e tramóias que tinham sempre como objetivo a busca de vantagens (pecuniárias ou não). Eis o protagonista do romance-folhetim As proezas de Rocambole, do francês Ponson du Terrail, publicado semanalmente no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro a partir de 1859, trilhando no Brasil uma trajetória de sucesso. Em pouquíssimo tempo, as aventuras desse personagem passaram a sair diariamente em vários jornais da Corte, sendo sempre ansiosamente esperadas por leitores ávidos por acompanhar as peripécias do herói-vilão. O final de cada série, e a quase simultânea retomada de outra, atendendo a pedidos, transformaram Rocambole em fenômeno de leitura mesmo em se tratando de uma sociedade majoritariamente analfabeta, como a brasileira do século XIX.

De fato, no Rio de Janeiro daquela época não era preciso saber ler para conhecer Rocambole. As leituras em voz alta, proferidas em grupo nas portas das boticas, botequins, residências ou esquinas da cidade, uniam o mundo letrado e o da transmissão oral. Assim, varando fronteiras sociais – e também geográficas – e multiplicando-se em edições variadas, Rocambole engordou os bolsos dos livreiros e proprietários de jornal e chegou a influenciar a própria língua portuguesa, transformando a expressão “rocambolesco” em sinônimo de delirante aventura, enrolada como um bolo.

Diante de tamanho sucesso, não surpreende que o personagem acabasse por saltar das páginas dos jornais para se estabelecer nos palcos teatrais da cidade, tal como ocorrera na França. No Rio de Janeiro, uma das adaptações mais aplaudidas do folhetim foi a comédia Rocambole no Rio de Janeiro, do ator e dramaturgo Francisco Corrêa Vasques, que estreou no teatro Lírico Fluminense em 1868.


Carioca, mulato, filho natural de uma família de poucas posses, Vasques teve acesso restrito à educação formal. Cursou por um breve período de tempo o Colégio Marinho, dele saindo para trabalhar na Alfândega do Rio de Janeiro e, logo após, na companhia teatral de João Caetano, contratado como ator em 1857. Não tardaria, também, para que começasse a escrever suas próprias peças e se especializasse num gênero dramático: as cenas cômicas, uma bem-sucedida receita de textos curtos, escritos para um ou mais atores, em prosa e verso abordando diversos assuntos, a partir da costura de elementos múltiplos. O público era da mesma maneira diversificado, composto por caixeiros, estudantes, famílias e até mesmo, no caso do Brasil, imperadores, freqüentadores assíduos dos espetáculos protagonizados pelo ator.

Comediógrafo autodidata, aplaudido nos palcos da Corte e das províncias em que se apresentou nos 36 anos de carreira artística, Vasques foi, contudo, rejeitado pela crítica ilustrada do seu tempo, que rotulou sua produção de “baixa” dramaturgia. Essa crítica ilustrada, exercida por indivíduos de educação formal superior, tais como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Quintino Bocaiúva e Souza Ferreira, considerava a obra de Vasques exemplo de uma dramaturgia menor porque, supostamente, teria comprometimento com o riso e o divertimento ou ainda com os lucros que poderiam ter o dramaturgo ou empresários do teatro; e não com a educação das platéias, “missão” da qual, eles acreditavam, estava revestido o tablado.

Que Rocambole no Rio de Janeiro e as outras comédias de Vasques se caracterizavam por um estilo recreativo, não resta dúvida. Mas um olhar mais atento para o texto do dramaturgo pode mostrar que por trás do riso residia uma crítica bem construída a certas questões do seu tempo. Tal sentido crítico, vale dizer, já aparecia enunciado no programa da récita de estréia da peça, publicada no Jornal do Commercio de 15 de janeiro de 1868. Nele, Vasques prometia passar em revista, com sua cena cômica, todos os “ridículos da atualidade” e apontar os “charlatães da época”.


Mas, diferentemente do Rocambole de Ponson du Terrail, o Rocambole de Vasques não oferecia perigo às carteiras dos incautos ou dor de cabeça à polícia. Seu poder de periculosidade residia no fato de ele ter se transformado em moda e, como toda moda, em “salvatério da humanidade” – utilizando uma expressão do próprio Vasques –, ou seja, encarnando as mais ridículas e reprováveis situações. De acordo com nosso dramaturgo, Rocambole estava estabelecido em toda parte e tudo por culpa da moda: “A moda, somente a moda, e aí vai uma prova de quanto ela é capaz”:

Filho menor que é fumante,
Receoso de uma poda
Quando o encontram fumando,
Vai dizer ao pai que é moda.

Sujeito que se embebeda
Quando vai a qualquer boda,
Diz sempre, piscando os olhos:
Não façam caso que é moda!

Moça que vive à janela,
Cujo pai não se incomoda,
Foge de casa dizendo:
Adeus, papai!...isto é moda.

Literato que na bola
Quer ter a ciência toda,
Se cair de quatro pés,
Não façam caso que é moda!

Viúva rica que chora,
Prá ver se aos tolos engoda,
Se casa depois de um mês,
Deixem passar que isso é moda.

Um marido diz à esposa:
“O Juca não te faz roda?”
“Qual (diz ela) conversamos,”
Isto entre primos é moda!


Por conta da moda, segundo Vasques, quando as saias balão foram atiradas “pelos ares”, permitindo às moças “andarem com as pernas de fora” e com as botas até os joelhos, Rocambole veio em auxílio das que protestaram em razão da finura das canelas:

Nem as magras,
Nem as gordas
Podem ter pernas mal feitas.
Pernas tortas, pernas finas
A moda fá-las perfeitas.

Se eu tivesse neste instante
Algumas pernas à mão,
Veriam estes senhores
Quanto vale o algodão.

Também quando algum deputado um dia defendia o governo com unhas e dentes e, no outro, atacava-o com veemência, ficava claro que se tratava de um “Rocambole desmamado”, que vira frustrados seus planos de beneficiar algum protegido. E era ainda Rocambole que se manifestava, travestido de negociante estrangeiro, como o francês da rua do Ouvidor que enriquecia em menos de um ano vendendo pomadas ou pó-de-arroz numa terra de facilidades e oportunidades, na qual “tout le monde pode fazer sua negoce sans prejuize; toujours pode ganhar dinheiro”. Ou era ainda Rocambole que aparecia disfarçado de inglês, reclamando por não ter conseguido um privilégio do governo e, aborrecido com a desfeita, “sapecava” sem “papas na língua”: “Oh! Brasil esta uma terra muite of de mesquinha, não vale uma pitade de tabaca; mim vai a Inglater e dau meus idéias para glória minha e satisfação”.


Constata-se, assim, que Vasques elaborou um texto original que resultou numa sátira bem humorada de certos costumes em voga na capital do Império, através de uma paródia do folhetim francês, traduzindo os temas nele abordados para a realidade de seu tempo e de seu país. A mola mestra de sua cena cômica era o embate entre o bem e o mal, como no folhetim. Mas ao apropriar o mesmo para o palco, com intenções simultaneamente críticas e lúdicas, criou um produto sui generis, fazendo emergir de seu texto uma noção de “rocambolesco” que, para além da idéia de delirante aventura, evidenciava uma espécie de “banditismo” poroso, com todo o sistema de engodos e trapaças que atingia o mais banal cotidiano. De fato, Vasques via aqueles tempos como lugar de espertezas, conchavos e frivolidades. Seu “herói” precisava, portanto, estar adequado a esse cenário. Assim, fez nascer seu Rocambole “à brasileira”, presente em todos os lugares, subornando, ludibriando e dissimulando, sendo esta a chave para alcançar a única coisa que se tinha em mente naquele momento: tirar vantagens de tudo e de todos.

Observador atento da realidade que lhe servia de fonte de inspiração, Vasques abordou questões candentes do seu tempo, lançando mão do riso para tratar de coisas sérias. E essa dimensão de sua obra se fez reconhecida por alguns contemporâneos como arte, tanto que a livraria Cruz Coutinho publicou Rocambole no Rio de Janeiro como parte da coleção de comédias, dramas e cenas cômicas, intitulada Teatro Moderno Luso-Brasileiro, dois anos após a première. Uma outra prova da popularidade desfrutada pelo seu trabalho deveu-se ao fato de a estréia dessa comédia, como de outras tantas que escreveu, ocorrer num espetáculo em que toda a renda da bilheteria se destinou ao ator. O público parece ter atendido o apelo de Vasques, feito no anúncio da récita nos seguintes versinhos: “Eis aí o meu programa/ Sem manha nem artifício/ O Vasques quer uma enchente/ Na noite do benefício/ Nessa noite ele promete/ A muita gente por mole/ Apenas se transformar/ No famoso Rocambole”.


A crítica ilustrada, apesar desse e de outros sucessos teatrais de Vasques, não abriu mão de seus preconceitos e tratou sempre o seu trabalho com reservas. Reservas que atravessaram décadas e acabaram por deixar o nome do dramaturgo na coxia da história do teatro brasileiro.

SILVIA CRISTINA MARTINS DE SOUZA É PROFESSORA DE HISTÓRIA DO BRASIL NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA E AUTORA DE AS NOITES DO GINÁSIO: TEATRO E TENSÕES CULTURAIS NA CORTE (1832-1868) (UNICAMP, 2002) E O PALCO COMO TRIBUNA: UMA INTERPRETAÇÃO DE “O DEMÔNIO FAMILIAR” DE JOSÉ DE ALENCAR (AOS QUATRO VENTOS, 2003).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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