segunda-feira, 2 de março de 2009

Um Japão que não vingou

Colonização nipônica não começou em terras paulistas, como se pensa, e sim num fracassado projeto no Norte fluminense
Marcelo Abreu Gomes

No final de 1907, um grupo de lavradores despertava curiosidade geral entre os moradores de Conceição de Macabu, distrito de Macaé, no interior do estado do Rio de Janeiro. Fisicamente diferentes, com roupas e costumes exóticos, língua incompreensível, eles trabalhavam duro nos limites da Fazenda de Santo Antônio, uma das maiores da região.

Eram todos japoneses, e ninguém jamais vira um japonês em carne e osso por ali. Ao contrário da maioria dos imigrantes que chegaram ao Brasil naquele período, não eram simples meeiros ou empregados de um latifúndio. Vieram comercializar por conta própria o que conseguissem plantar e colher, num sistema em que o Estado entrava com a terra e eles, com a produção. O grupo não era diferente só na origem asiática ou na forma pela qual tomaram posse da antiga fazenda. Foram protagonistas do primeiro projeto de colônia agrícola tocado com mão-de-obra nipônica no Brasil. Isto se deu sete meses antes da chegada a São Paulo do navio Kasato Maru, tido como marco oficial do início da imigração japonesa no país.

O destino desses imigrantes foi determinado pelo momento político e econômico que vivia seu país de origem. O progresso e a acelerada modernização experimentada durante a chamada Era Meiji — reinado do imperador Meiji Tenno (1868-1912), Mutsuhito para os ocidentais — e as vitórias militares contra a China (1894-1895) e a Rússia (1904-1905) haviam conferido ao Japão uma sensação de superioridade em relação aos outros países. Os japoneses sentiam-se imbuídos da missão de civilizar o mundo, e um bom projeto era conquistar as Américas. Não pela guerra, mas pelo exemplo e pela força de trabalho. Foi nesse clima de euforia que jornais de Tóquio divulgaram relatórios do ministro Sigimura (1848-1906), embaixador japonês no Brasil, discorrendo sobre o futuro da cafeicultura e a escassez de mão-de-obra nas lavouras daqui.

Os relatórios chamaram a atenção de Saburo Kumabe (1865-1926), que se transformaria em personagem-símbolo dessa era. Formado em Direito, Kumabe era juiz em Kagoshima. Apesar da vida estabilizada, resolveu deixar tudo e seguir para o Brasil, onde, proclamava, os súditos do império japonês deveriam demonstrar sua superioridade. Pediu aos governadores provinciais de seu país que lhe enviassem jovens com disposição de emigrar. Aos 41 anos, Kumabe embarcou para o Brasil em maio de 1906, no navio Sanuki-maru, acompanhado da esposa, Iho, do filho, Keiichi, e das filhas, Mitsu, Teru, Toki e Hide, além de outros japoneses.

Inicialmente, as coisas não deram certo para Kumabe e seu grupo, que acabou se dispersando. Ele e sua família tiveram de trabalhar como enroladores de cigarros em São Paulo. Até que, em 1907, surgiu a oportunidade que esperavam: foram contatados por Ryo Mizuno (1860-1951), que presidia a Companhia de Imigração Japonesa. Mizuno estava interessado em alocar no Brasil imigrantes de seu país. Sabendo dos projetos de Kumabe, propôs-lhe a formação de uma colônia agrícola no interior do estado do Rio de Janeiro. Kumabe levaria para lá seus parentes e mais um grupo de imigrantes. Travava-se de um projeto inédito no Brasil. E, sobretudo, dificultoso, já que os japoneses não tinham familiaridade com o clima nem com os costumes brasileiros.

O local da empreitada foi definido a partir de um acordo com o governo do Rio de Janeiro. Em 3 de agosto de 1907, o jornal O Lynce informou que Mizuno visitara Macaé com um grupo de imigrantes para conhecer a Fazenda Santo Antônio, em Conceição de Macabu. “A fazenda, adquirida pelo governo do estado, se for aprovada pelos visitantes, será escolhida para receber colonos de origem japonesa”, publicou O Lynce. Mizuno, ao que parece, gostou do lugar. A família Kumabe, seguida de Ryoichi Yasuda, Shinkichi Arikawa e Tamezo Nishizawa, chegou a Macaé no dia 29 de novembro, fato também noticiado por O Lynce, na edição do dia 30: “Esses imigrantes”, escreveu o repórter, “são os primeiros que vão se localizar na Fazenda Santo Antônio, recentemente adquirida pelo governo fluminense para a instalação de uma colônia japonesa, conforme contrato celebrado com a Cia. de Imigração Japonesa”.

No dia 1º de dezembro, os imigrantes começaram a fazer um levantamento da propriedade. Era um latifúndio de mais de 3.200 hectares, com mananciais de água, florestas, paióis de milho e café, moinhos de farinha de mandioca e milho, estábulo, casa-grande e senzala do tempo da escravidão, capela e alambique. À primeira vista, uma propriedade com muitas condições favoráveis ao progresso de uma colônia agrícola. E eles puseram-se a trabalhar com o afinco e a coragem necessários para prosperar em um país estranho, cuja língua não entendiam. Em matéria de coragem, aliás, tinham tradição. Alguns imigrantes vinham de conhecidos clãs de guerreiros. A senhora Iho, esposa de Kumabe, descendia de uma família de samurais: os Tsuneoka, da província de Kanagawa. Outro imigrante descendente de samurais era Yusabugo Yamagata (1860-1924), da tradicional família Kobayashi, da província de Nagasaki.

A presença dos orientais logo chamou a atenção dos moradores de Conceição de Macabu, a vila mais próxima, com pouco mais de mil habitantes, servida na época pelo ramal ferroviário da Leopoldina Railway Company. Depoimentos colhidos durante recente pesquisa no local mostram o quanto a população de fato os estranhou. Dona Maria Magnólia da Conceição (1890-1999), filha e neta de feitores de escravos, comentou certa vez a respeito dos hábitos para ela exóticos dos japoneses. Comiam arroz e peixe em tigelas e se vestiam de maneira diferente. As crianças da colônia, para estudar, andavam até oito quilômetros por dia, cruzando pântanos e percorrendo trilhas desertas, até a escolinha de uma fazenda da região. O historiador Herculano Gomes da Silva, cujo pai tinha um comércio de secos e molhados no lugar, relembra histórias que os mais velhos contavam, segundo as quais japoneses eram vistos com freqüência circulando pela vila, vendendo arroz e artesanato e adquirindo mercadorias, como sal, querosene, ferramentas, tecidos, agulhas e linhas.

A colônia produziu leite e derivados, além de milho, feijão e arroz. Este era plantado nas inúmeras várzeas da propriedade, chegando a duas colheitas por ano. Com o passar do tempo, porém, os imigrantes foram desistindo do projeto. Outros japoneses foram enviados ao local pela Companhia de Imigração, mas também abandonaram a propriedade. A colônia acabou em 1912, quando Saburo Kumabe e sua família partiram. A exaustão do solo, a falta de apoio governamental e o desinteresse da Companhia de Imigração Japonesa levaram ao fracasso da experiência.

Mas não só isso. Vários colonos padeceram com a malária e houve crônicos ataques de saúvas às plantações. “O fato de ele [Kumabe] ter permanecido durante cinco anos, até o ano de 1912, nessa árida Fazenda Santo Antônio, a meu ver sem nenhum futuro e infestada de saúva e malária, deixa-me admirado pela perseverança, que a mim parece até temerária”, escreveu Teijiro Suzuki, em Umoreyuku Takujin no Sokuseki (“Rastros dos pioneiros que estão se apagando”), de 1969.

O Jornal Paulista, em reportagem de 1955, não poupa críticas a Ryo Mizuno, o presidente da Companhia de Imigração Japonesa, considerado um dos grandes responsáveis pela imigração maciça de japoneses para o Brasil. Segundo o periódico, Mizuno, como parte de um esquema de propaganda para atrair mais imigrantes de seu país, “publicou fotos da família Kumabe na revista japonesa Taiyo, apresentando-os como imigrantes japoneses bem-sucedidos no Brasil”. Mas, na prática, abandonou a colônia à própria sorte.

Diante de tamanhas dificuldades, restou a Saburo Kumabe abandonar o projeto e empenhar-se por um futuro digno para seus filhos, o que, de certa forma, conseguiu. Duas de suas filhas se formaram professoras em 1918. Um ano depois, naturalizaram-se brasileiras para serem efetivadas como titulares. Foram as primeiras japonesas a se formar em uma escola secundária no Brasil. Outro pioneiro da Santo Antônio, Ryoichi Yassuda (1879-1971), também viu seus esforços refletidos nos descendentes. Seu filho, Fábio Yassuda, foi o primeiro nissei a ocupar um ministério: o da Indústria e Comércio, no governo Médici, em 1969.

O sonho de criar no exterior um mundo novo, provando que o desenvolvimento da Era Meiji se explicava pela tenacidade e pelo talento de uma raça de homens superiores, caiu por terra. A realidade mostrou aos imigrantes que não bastava a vontade de vencer. Mas a história não termina aí. Em 1908, outro grupo de japoneses chegou ao porto de Santos a bordo do Kasato Maru. Eram 781 imigrantes. Como os da Fazenda Santo Antônio, também vieram para trabalhar no campo. Dessa vez, com reais possibilidades de êxito.

Marcelo Abreu Gomes é professor de História e Manifestações da Cultura Popular das redes pública e privada de ensino de Macaé e Conceição de Macabu. Autor do livro Antes do Kasato Maru (Gráfica Macuco, 2008).

Saiba Mais - Livros:

CLAVELL, James. Xogum – A Gloriosa saga do Japão. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996.
LESSER, Jeffrey. Negociando a Identidade Nacional: Imigrantes, Minorias e a Luta pela Etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
SAITO, Hiroshi. A Presença Japonesa no Brasil. São Paulo: TA Queiroz/Edusp,1980.

Saiba Mais - Filmes:

“Gaijin – Os caminhos da liberdade” (dir. Tizuka Yamasaki). Brasil, 1980. Embrafilme.

“Gaijin – Ama-me como sou” (dir. Tizuka Yamasaki). Brasil, 2005. Globo Vídeo.

Saiba Mais - Sites:

www.centenario2008.org.br

www.fjsp.org.br/guia/cap01_a3.htm

www.imigracaojaponesa.com.br
Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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