quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guerra do Paraguai: briga entre Hermanos



Guerra do Paraguai: briga entre Hermanos
Nova versão da Guerra do Paraguai nega conspiração inglesa e afirma que conflito foi motivado por disputas regionais
por Patrícia Pereira
O brasileiro que aprendeu sobre a Guerra do Paraguai na escola depois da década de 60 tem motivos para se envergonhar de seu país. Afinal, a versão sobre o conflito disseminada pelos livros didáticos é que o Brasil, a Argentina e o Uruguai foram usados em uma guerra arquitetada pela Inglaterra para arruinar o Paraguai. Mas eis que surge um alento para a nossa auto-estima. Uma recente revisão sobre as causas da guerra aponta que a tese da conspiração inglesa é pura fantasia. Na realidade, afirmam os defensores da nova versão, o conflito entre os países sul-americanos foi motivado por disputas de território e poder na região do rio da Prata.

A Guerra do Paraguai se estendeu por mais de cinco anos, de dezembro de 1864 a março de 1870. Logo que ela terminou surgiram relatos sobre as batalhas e seus heróis, mas as causas históricas que motivaram o conflito foram relegadas a segundo plano. Isso porque ninguém questionava o fato de o presidente paraguaio, Solano López, ter sido um ditador sanguinário e megalomaníaco que conduziu seu país a uma guerra sem chances de vitória. Odiado por todos, López era visto como o grande causador do conflito.


No final do século 19 e início do século 20, algumas vozes se levantaram contra essa versão. No Brasil, os positivistas, contrários à monarquia como forma de governo, passaram a responsabilizar o império pelo confronto. No Paraguai, López teve sua imagem reconstruída e passou a ser apresentado como estadista e grande chefe militar. Para essa corrente revisionista, López foi um exímio general que entrou na guerra para defender os interesses econômicos do Paraguai.

Armação inglesa

Mas foi no final da década de 1960 que a teoria conspiratória inglesa ganhou força. Intelectuais nacionalistas e de esquerda, com inspiração marxista, criaram a imagem de López como líder antiimperialista. O Paraguai pré-guerra era apresentado por esses estudiosos como uma república autônoma, um país que havia conseguido alcançar o equilíbrio social e o desenvolvimento econômico. Tal condição representaria uma ameaça para a Inglaterra, que perderia uma fonte de matéria-prima no exterior e um comprador de seus produtos industriais. Assim, os ingleses teriam manipulado o Brasil e a Argentina para que destruíssem o Paraguai.

Reflexo do contexto histórico em que essa versão foi escrita, de disputas imperialistas, López passava a ser para esses intelectuais quase um líder socialista, a proteger seu país contra uma potência, e o Paraguai se tornava uma espécie de Cuba que lutava contra o domínio dos “Estados Unidos da época”, a Inglaterra. No Brasil, a publicação mais marcante que difundiu essa versão foi Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai, de autoria do jornalista Julio José Chiavenatto.

A fraqueza dessa tese está na falta de provas. Chiavenatto chegou a escrever em seu livro que “a maioria dos seus documentos [da Guerra do Paraguai], se não todos os documentos mais importantes, está proibida para o pesquisador que pretende ir além de fenômenos circunstanciais”.

E é baseada em provas documentais que uma nova teoria veio contestar a idéia de que a guerra foi provocada por uma conspiração inglesa para deter a autonomia paraguaia. “Não existe um documento, de qualquer origem, que mostre a vinculação ou o interesse do governo inglês em fazer uma guerra contra o Paraguai”, afirma o historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita Guerra – Nova História da Guerra do Paraguai, livro que marca o neo-revisionismo no Brasil e fortalece a tese de que o conflito foi motivado por interesses regionais. O historiador encontrou uma carta do representante diplomático britânico em Buenos Aires, Edward Thornton, dirigida ao governo paraguaio, em dezembro de 1864, na qual oferecia seus préstimos para evitar uma guerra entre o Paraguai e o Brasil.

Doratioto rebate ponto a ponto os argumentos dos intelectuais da década de 60. “É bom lembrar que o império do Brasil estava com relações diplomáticas rompidas com a Inglaterra e só as restabeleceu em outubro de 1865, quando Mato Grosso foi invadido pelo Paraguai em dezembro de 1864”, diz Doratioto, ao contestar a possível intenção da Inglaterra de apoiar o Brasil na guerra. Doratioto, e toda a corrente neo-revisionista, afirma que as causas da guerra foram as disputas regionais. “Não há ‘bandidos’ ou ‘mocinhos’, como quer o revisionismo infantil, mas sim interesses”, escreve em seu livro.

Atritos regionais

E que interesses eram esses? O Brasil não esperava uma guerra contra o Paraguai, mas, depois de iniciada, apostou que o conflito poderia colocar fim aos problemas de fronteira entre os dois países e às ameaças por parte do Paraguai de impedir a livre navegação pelo rio que dava acesso ao Mato Grosso. Também vislumbrou na guerra uma chance de conter a influência da Argentina sobre o Paraguai. Na época, os estados nacionais ainda estavam se formando e o Brasil temia que Buenos Aires incorporasse o território paraguaio e formasse uma república grande e forte na região, nacionalizando os rios platinos e criando obstáculos à navegação.

Para a Argentina, a guerra era a chance de consolidar o Estado centralizado, derrotando o apoio externo dado por Solano López à ala federalista, contrária à unificação argentina. O país também tinha interesses no território do Chaco, até então de soberania paraguaia.

O próprio Paraguai tinha seus propósitos. López via a chance de fazer de seu país uma potência e de ter acesso ao mar pelo porto de Montevidéu (o Paraguai havia se aliado à oposição – os blancos – no Uruguai).

Já o Uruguai, que vivia um conflito civil, com blancos e colorados na disputa pelo poder, era um país dividido e sem autonomia. Ele tinha no apoio militar paraguaio dado aos blancos contra argentinos e brasileiros uma chance de impedir que esses dois países continuassem a intervir em sua política. E foi exatamente desse apoio que começou a guerra: tropas brasileiras, com aval argentino, entraram no Uruguai para realizar uma intervenção. O Paraguai reagiu invadindo o Mato Grosso e Corrientes, na Argentina, atos que levaram à formação da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) para enfrentar López.

Para Chiavenatto e a corrente revisionista, essas questões de limite entre os países, “pela sua falta de propósito para causar uma guerra”, foram “meros pretextos para criar condições de uma invasão do Paraguai”, afirma o jornalista. Doratioto contesta: “Parece óbvio, mas quando se discutem as origens da guerra, se esquece de um fato evidente: o Paraguai começou o conflito ao atacar o Mato Grosso e, depois, o território argentino. É importante se ater às datas, de ‘quem fez o que’ antes, o que permite evitar deturpações – conscientes ou não – do processo histórico”.

Doratioto considera superada a versão de uma conspiração inglesa. “Entre os historiadores acadêmicos que estudam o assunto não há, hoje, quem a adote”, afirma. E parece ter respaldo. A professora Lídia Maria Vianna Possas, que leciona a disciplina História da Formação dos Países Latino-Americanos na Faculdade de Relações Internacionais da Unesp, de Marília, diz que a antiga versão sobre a Guerra do Paraguai era frágil e parcial. “Era uma visão de que tudo o que ocorria na América Latina tinha um culpado lá fora. Uma questão de auto-estima baixa, pois achávamos que não éramos os responsáveis por nada. Os fatos ocorriam porque os Estados Unidos ou a Inglaterra assim desejavam. Uma historiografia muito marxista”, diz Lídia.

Para ela, o neo-revisionismo, que aposta nos conflitos regionais como causadores da guerra, resgatou o papel do sujeito. “Não foi uma guerra orquestrada em Londres. Aqui mesmo existiam pessoas com idéias próprias e que faziam o jogo dos interesses locais.”


Dinheiro inglês

Lídia lembra que a Inglaterra acabou prejudicando o Paraguai ao fazer empréstimos bancários aos países da Tríplice Aliança, mas afirma que isso não ocorreu de forma deliberada, e sim atendendo a interesses da burguesia inglesa. “A Inglaterra até começa com certo apoio ao Paraguai, mas depois fica com a maioria, com quem irá vencer e comprar dela depois”, afirma Lídia.

O apoio financeiro dado pela Inglaterra aos países da Tríplice Aliança é mesmo um dos argumentos mais fortes da teoria conspiratória defendida por intelectuais da década de 60, mas Doratioto rebate essa idéia. “Aqui há dois aspectos preliminares a se considerar: o primeiro é que se trata de banqueiros, de interesse privado, e não do governo inglês; e o segundo é que, no lado brasileiro, o financiamento da guerra foi feito basicamente com recursos próprios. Os empréstimos da Inglaterra significaram pouco mais de 10% do que foi gasto. Banqueiros ganham dinheiro com empréstimos e emprestam para quem pode pagar. Nada de surpreendente, portanto, que tenham emprestado dinheiro aos aliados. E por que não emprestaram ao Paraguai? Porque, já no início da guerra, uma análise pragmática – e eis uma característica dos banqueiros – permitia concluir que o Paraguai podia não ganhar a guerra e, portanto, não seria de se estranhar se deixasse de honrar os empréstimos”, diz o historiador.

Doratioto também contesta com veêmencia a idéia central dos revisionistas da década de 60, de que o confronto foi orquestrado pela Inglaterra com o objetivo de aniquilar o desenvolvimento autônomo do Paraguai e abrir um novo mercado consumidor para os produtos britânicos e fornecedor de algodão para as indústrias inglesas. “O mercado consumidor paraguaio era diminuto, pela falta de poder aquisitivo da população, e, ainda assim, aberto a importações. Quanto ao algodão, a Guerra do Paraguai se iniciou quando a luta norte-americana já terminara sem que, durante os quatro anos desse conflito, a Grã-Bretanha tivesse tomado qualquer iniciativa para obter algodão paraguaio”, escreve em seu livro.

Mais fantasiosa do que a tese de uma conspiração inglesa para conter o surgimento de uma potência na América Latina talvez seja a idéia de que o Paraguai representasse substancialmente essa ameaça. Segundo Doratioto, o Paraguai de Solano López era uma nação sem dívidas e com avanços tecnológicos justamente graças à presença de técnicos estrangeiros. Mas essa modernização se limitava ao plano militar. No campo, os agricultores paraguaios ainda utilizavam técnicas de cultivo de no mínimo dois séculos atrás. Sem contar que o Estado era dono de quase 90% do território nacional. Também seria equivocado dizer que havia igualdade social e educação avançada. Enfim, parece claro que o Paraguai estava longe de representar uma ameaça às pretensões inglesas. O que nos faz suspirar aliviados – afinal, ao que tudo indica, toda a vizinhança teve um pouco de responsabilidade nessa guerra.

Como Solano López virou um herói

Terminada a Guerra do Paraguai, o país de Solano López estava empobrecido, com baixa auto-estima e carente de líderes. Esse contexto favoreceu um movimento para recuperar a imagem de López. De ditador responsável por uma guerra desastrosa, ele passou a ser visto como vítima da Tríplice Aliança e personificação do patriotismo. Mas segundo o historiador Francisco Doratioto, os verdadeiros motivos para se construir uma imagem heróica de López foram as vantagens econômicas ambicionadas por seus herdeiros – interessados em receber o espólio do ditador que fora embargado pela Justiça paraguaia.


Número de mortes causa divergência
As estatísticas sobre o número de mortos na Guerra do Paraguai são díspares. Isso ocorre em parte pela falta de dados confiáveis sobre a população paraguaia antes do conflito. No livro Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, Julio José Chiavenatto diz que, antes da guerra, o Paraguai tinha 800 mil habitantes. Terminado o conflito, existiriam no país 194 mil pessoas, sendo 14 mil homens (70% crianças com menos de 10 anos) e 180 mil mulheres. O autor aponta também que, dos 4200 homens com acima de 10 anos, apenas 2100 tinham mais de 20 anos. Supondo que metade da população antes da guerra era formada por homens e a outra metade por mulheres, a conclusão que se chegaria é que 99,5% da população masculina adulta do Paraguai teria morrido no conflito. O livro Maldita Guerra – Nova História da Guerra do Paraguai, de Francisco Doratioto, traz outras estatísticas. Para o historiador, as perdas paraguaias na guerra variaram entre 8,7% e 69% da população. Ele aponta os dados divergentes sobre o número de habitantes do Paraguai no pré-guerra. A estimativa varia de 285715 a 450 mil pessoas. Portanto, teria sido de 28286, no mínimo, a 278649, no máximo, a redução da população paraguaia ao final dos cinco anos de guerra. Doratioto ressalva que a maior parte das mortes não se deu no campo de batalha, mas em conseqüência de doenças, fome e exaustão física. Além disso, muitos dos paraguaios dados como desaparecidos, na realidade, emigraram para a Argentina ou para o Brasil depois que terminou a guerra.

Quanto ao Brasil, o país enviou para o conflito139 mil homens. Desses, cerca de 50 mil morreram, a maior parte devido a doenças e aos rigores do clima. O Uruguai participou da guerra com cerca de 5500 soldados. Ao final do conflito, restavam por volta de 500. Já a Argentina, que contava no início com 30 mil homens, sofreu uma baixa de 18 mil soldados.


Saiba mais
Livros

Maldita Guerra – Nova História da Guerra do Paraguai

Francisco Doratioto, Companhia das Letras, 2002.

Contesta a idéia de uma conspiração inglesa como causa da guerra e apresenta os conflitos regionais que provocaram a luta.



História da Guerra do Paraguai

Max von Versen, Itatiaia/ Editora da USP, 1976.

O dia-a-dia dos acampamentos paraguaios durante a guerra, incluindo a falta de recursos básicos, como comida e roupa.

Revista Aventuras na Historia

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