quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A reconquista da liberdade


A reconquista da liberdade
Índios da Amazônia recorriam aos tribunais do rei, no século XVIII, para se livrarem da escravidão e dos maus-tratos
Marcia Eliane A. Souza e Melo

Embora já tenham sido vistos como pessoas sem voz, indefesas, tuteladas pelo Estado e, em algumas regiões remotas do país, entregues à própria sorte, os indígenas, no período colonial, dispunham de meios legais para recorrer contra as injustiças que os vitimavam. E deles lançavam mão. Foi este o caso de um índio chamado Roque. Inconformado com a escravidão, pois nascera livre, ele apelou, em 1726, à Junta das Missões do Maranhão questionando o poder de seu suposto proprietário, Manuel Ferreira, e pedindo que fosse declarado forro. Em julho do mesmo ano, o procurador de índios Manoel da Silva pleiteou a liberdade de algumas índias que, segundo ele, eram mantidas em cativeiro injustamente. Uma delas, de nome Cecília, relatou que, após a morte do padre José Teixeira, seu protetor, tinha sido arrestada, como um objeto qualquer, e vendida em praça pública, junto com os filhos.

Há poucas décadas, pesquisadores consideravam casos como esses excepcionais e isolados. Agora, a partir de pesquisas recentes, já se sabe que não eram tão incomuns. Muitas reclamações dos “gentios da terra”, como eram chamados os indígenas, foram encaminhadas à justiça colonial. Em geral, eles reivindicavam a condição de “forros” – isto é, lutavam legalmente pela sua liberdade. Tal pleito pode parecer contraditório, já que, segundo as leis portuguesas, os índios eram livres. Mas a realidade não era assim tão simples, pois a legislação que os assistia era cheia de meandros e exceções, o que originava complicados litígios. Por exemplo: segundo o alvará de 28 de abril de 1688, podiam ser escravizados os índios que tivessem sido capturados em guerras ou ações de resgate consideradas “justas”. Somente as anotações feitas pelas tropas comprovavam se eram legitimamente cativos. Muitas vezes, ficava difícil provar o que era verdade ou mentira.

No final do século XVI, foi criado o cargo de Procurador dos Índios, ofício exercido por um morador de determinada comunidade, que atuava como advogado. Em 1700, o sistema mudou: os ouvidores das capitanias de Pernambuco e Rio de Janeiro foram nomeados, por ordem régia, “juízes das causas de liberdade dos índios”. Avaliando os obstáculos que impediam a execução plena de suas ordens, o rei D. João V (1689-1750) estabeleceu, em 1735, que as apelações da sentença do ouvidor seriam remetidas à Junta das Missões. Surgia, assim, o Juízo das Liberdades. Ligado às ouvidorias, funcionava como um foro de primeira instância, por onde corriam as petições dos índios. Estes tinham pelo menos duas maneiras de lutar na Justiça. Uma, por meio de um requerimento encaminhado diretamente à Junta das Missões por eles próprios, ou, em nome deles, pelo procurador. A outra era por intermédio do Juízo das Liberdades. Ali era formado um processo – os “autos de liberdade” –, no fim do qual o ouvidor da capitania proferia a sentença.

Empregada habitualmente pelos índios, a forma de petição direta continuou a ser encaminhada à Junta mesmo depois da criação do Juízo das Liberdades. Como exemplo, temos o caso da índia Antônia, trazida contra sua vontade dos “sertões” do Rio Amazonas por Diogo Freire, que depois a vendeu para Antônio Vieira, da Vila de Tapuitapera, no Maranhão, em cujo poder se conservou a índia, “sem repugnância pelo bom tratamento que ele lhe dava”. Ao ser vendida a outro morador, que a maltratava, Antônia decidiu buscar sua liberdade enviando uma petição à Junta das Missões do Maranhão. Na reunião de junho de 1739, ela foi considerada “forra e livre de cativeiro”, já que Diogo Freire não apresentou um título legítimo de escravidão.


Requerimento semelhante foi proposto na Junta do Pará, em 1751, pelo procurador dos índios Manuel Machado. A índia Esperança, da aldeia de Mortigura, solicitava ser retirada do poder de Sebastião Gomes, reclamando do tratamento cruel e de ser forçada a servi-lo. A Junta também considerou a índia livre. Nos dois casos, os maus-tratos foram os principais motivadores da busca de alforria. Queriam as índias, como libertas, conquistar o direito “de servir a quem quisessem”, livrando-se, conseqüentemente, dos tormentos que sofriam. Curiosamente, depois da sentença favorável à liberdade, alguns continuavam a servir àqueles que haviam denunciado por injusto cativeiro. Foi este o caso de uma índia chamada Maria: liberta pela Junta do Maranhão, ela aceitou continuar a servir a Dona Isabel Pereira de Menezes, mas com o compromisso de bom tratamento e salário.

A segunda maneira de entrar com recurso no Juízo das Liberdades podia ser bem mais morosa e dispendiosa. Como as partes apelavam e embargavam, o processo demorava meses ou anos até uma decisão final, e muitas vezes os índios ficavam durante esse tempo na difícil situação de viver sob a custódia de seus senhores. Além disso, as ações de liberdade com sentenças favoráveis do ouvidor podiam ser revogadas pela Junta das Missões, justamente pelos votos dos ministros religiosos, que deveriam defender a liberdade, e não a escravidão dos índios.


Foi o que aconteceu com Mônica e suas três filhas – Maria, Marcelina e Ignácia Carneira –, moradoras no Maranhão. Em 1733, elas reivindicaram sua liberdade contra Dâmaso Ribeiro Viegas e sua filha Tereza Maria de Jesus, declarando nos autos que eram filha e netas da índia Sabina, retirada ainda menina da aldeia Maracanã pelo padre Pedro Gonçalves para aprender o ofício de costureira em São Luís. Precisando viajar para a capitania de Pernambuco, o padre deixou Sabina na casa de seu tio, Antônio Carvalho, recomendando que a enviasse para a aldeia depois do aprendizado. Descumprindo o trato, Antônio casou Sabina com seu escravo Alexandre, também índio, e dessa união nasceram vários filhos, entre eles a citada Mônica.

Ponderando que as índias eram descendentes de ventre livre e que não havia sido apresentado registro de escravidão, o ouvidor José de Souza Monteiro sentenciou “por livres as autoras e seus produtos para poderem viver com quem quisessem”. Mas os réus apelaram, e em junho de 1738 as índias foram consideradas escravas legítimas pela Junta das Missões do Maranhão, dando início a uma batalha que se arrastou por décadas. Por meio de vários requerimentos ao Reino, elas tentaram, sem sucesso, passar o julgamento para a Casa da Suplicação (Corte Suprema para Portugal e para as Colônias), defendendo que a causa fora iniciada antes de 1735. Em 1753, enviaram novo requerimento ao rei D. José I (1714-1777), desta vez solicitando, e conseguindo, licença para apelar novamente da sentença na própria Junta das Missões do Maranhão. Analisado em várias sessões da Junta, só em novembro de 1756 o processo foi concluído: Mônica e suas filhas foram consideradas escravas.


Destino inverso teve a causa da índia Margarida. Ela contestou a sentença do Juízo das Liberdades e recorreu à Junta das Missões do Maranhão, em dezembro de 1751, contra a viúva Maria Pereira, solicitando carta de liberdade. Depois de vários embargos impetrados pela viúva, em 1752 a Junta pôde proferir a decisão em que concedia liberdade a Margarida e seus filhos.

Muitas dessas ações de liberdade envolviam partilha entre herdeiros e a reação dos índios contra seus novos donos. Como no processo movido pela índia Catarina e suas irmãs Teodora e Domingas. Por volta de 1725, Martinho Lopes da Fonseca, marido de Catarina, enviou várias petições ao governador do estado do Maranhão, João Maia da Gama (1722-1728), informando que Catarina e suas irmãs tinham sido injustamente arroladas como escravas em inventário de Ana Rodrigues Sameira. As irmãs saíram da casa de Manoel Lopes de Souza, genro da defunta, onde se encontravam, e foram reclamar sua liberdade antes que o novo dono, Manoel Gaspar Neves, tomasse posse delas. O governador João Maia da Gama foi favorável ao pedido e determinou que ficassem sob a guarda do procurador dos índios enquanto transcorresse o processo.

Embora a Junta das Missões fosse considerada um tribunal de defesa da liberdade indígena, ali também eram julgados todos os processos relacionados às operações de recrutamento da força de trabalho indígena, como a autorização para resgates privados, guerras justas e “descimentos” – expedições que conduziam índios considerados bravos para a pacificação em aldeias. Essa contradição, evidente nos diferentes interesses que transitavam por ela, acompanhou a Junta durante toda a sua existência.

Os recursos ao tribunal superior mobilizavam não só os índios e os que utilizavam seus serviços, mas toda a sociedade colonial, como se pode constatar pela polêmica que agitou a Câmara do Pará em 1744, quando os vereadores questionaram com vigor a competência da Junta para julgar as apelações, afirmando que traziam prejuízos ao bem comum e à justiça. O rei não aceitou essas reclamações, e só mais tarde, com as mudanças provocadas pelas reformas pombalinas na Amazônia portuguesa, foi revogada a resolução de 1735.


Em 29 de junho de 1757, o rei D. José I autorizou que se pudesse recorrer das decisões da Junta das Missões no Tribunal da Relação (órgão máximo da Justiça colonial), passando as apelações de liberdade a ser encaminhadas aos juízes das relações da Bahia e do Rio de Janeiro. Foi criada então a Junta da Liberdade (substituindo a das Missões) e iniciada uma outra fase para os índios que reivindicavam alforria. Neste novo cenário encontramos diversas petições, como a da índia Laureana e seus filhos (Pará, 1758) e a de Antônio (Maranhão, 1759), que requeriam o direito de viver onde lhes aprouvesse e de servir a quem quisessem. Assim, não só foi possível recuperar outras histórias de luta contra a escravidão, como demonstrar que os índios cativos na Amazônia colonial portuguesa recorriam à lei, com freqüência maior do que se imaginava, para alcançar a liberdade.

MARCIA ELIANE A. SOUZA E MELLO é professora da Universidade Federal do Amazonas e autora da tese “Pela propagação da fé e conservação das conquistas portuguesas. As Juntas das Missões – séculos XVII-XVIII”. (Universidade do Porto, 2002).

Revista de História da Biblioteca Nacional

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