sábado, 12 de dezembro de 2009

Uma análise sobre a historiografia das mulheres medievais


Idade Média, idade das "trevas"?

Uma análise sobre a historiografia das mulheres medievais

Paulo Thiago S. Gonçalves Silva

Resumo
Com o uso de uma prática de generalização, historiadores (as) do século XX têm silenciado e apagado a participação das mulheres na historiografia sobre a Idade Média. A partir da análise de textos retirados da "História da Vida Privada", referente ao período medieval (Duby e Ariès [orgs], 1990), é possível notar como a historiografia tradicional tem obscurecido a existência e atuação das mulheres medievais. Baseando suas investigações em textos da época, em sua maioria escritos por homens, padres e moralistas e construindo uma imagem unívoca das mulheres, transformando a pluralidade de mulheres "reais" em uma única Mulher, modelo a ser seguido, os/as historiadores (as) desenvolvem uma imagem cristalizada e naturalizada das mulheres, eliminado assim, a multiplicidade da história.


Tentar conhecer as mulheres, em um dado momento do período medieval, através da literatura existente hoje, é, no mínimo, uma grande aventura. Apesar dos recentes lançamentos da historiografia nessa área, que surgem através de novas perspectivas teóricas, trazendo à tona a "história das mulheres", ainda é muito difícil encontrar grande número de estudos sobre o assunto. Nas obras de autores consagrados, como Jacques Le Goff, Marc Bloch e outros, as mulheres têm uma ínfima visibilidade, muitas vezes dividida com as crianças, relegada ao mesmo estatuto de mera coadjuvante da história, entre páginas e mais páginas sobre as classes e o governo dos homens.

O que busco com este artigo é observar como a historiografia tratou as mulheres do período medieval, como os textos históricos definiram-lhes um espaço e deram a elas uma forma única, silenciando assim uma série de personagens e eliminando a pluralidade da história. Para esse trabalho utilizo como fonte alguns textos da "História da Vida Privada; Da Europa feudal à renascença" (Duby e Ariès (orgs), 1990), composto de uma série de trabalhos que buscam contar um pouco da vida cotidiana na Idade Média, ocupando um lugar importante nos estudos sobre este período. Nesse volume, três textos foram selecionados por tratarem do tema em questão; "O perigo: as mulheres e os mortos" (Duby e Ariès (orgs), 1990: 88-95) de Georges Duby, "O exterior conquistado pelas mulheres" (Duby e Ariès (orgs), 1990: 287-291) de Charles de la Roncière e "A mulher na comunidade" (Duby e Ariès (orgs), 1990: 349-352) de Danielle Régnier-Bohler.

Grande estudioso da Idade Média, Georges Duby buscou aprofundar as suas pesquisas sobre as mulheres e se debruçou sobre o assunto escrevendo uma série de textos, entre eles uma trilogia sobre As Damas do Século XII, não se distanciando muito do modo como a maioria dos (as) historiadores (as) tem tratado a história das mulheres. Ou seja, apesar de apresentar uma problemática específica, o autor, em sua introdução, deixa supor que a documentação trabalhada tenha sido escrita por homens. Segundo Duby:

(...) todos esses textos foram feitos para ser declamados, e com freqüência cantados, diante de um auditório. Todos, mesmo os destinados a divertir, os romances, as canções, os contos satíricos, tinham a função de ensinar. Não se preocupavam em descrever o que existia, tiravam da experiência cotidiana, e sem se proibirem de retificá-la, elementos que proporcionassem uma lição moral. Afirmando o que se devia saber ou acreditar, buscavam impor um conjunto de imagens exemplares.(Duby, 1995: 11)

O autor explicita aqui o caráter normativo desta forma de expressão. Os textos buscavam impor uma ordem e um sentido, modelar seus receptores. Suas fontes remetem a uma imagem idealizada por quem as escreveu, o que se queria de uma mulher, não necessariamente o que eram elas ou o que elas queriam ser.

As asserções de Duby relativas às mulheres limitam-se a reconstituir as imagens forjadas no tempo que lhes assistiu a existência. Sua proposta, entretanto é indicar sistemas de valores construtores das figuras femininas.


Faço de imediato essa advertência. O que procuro mostrar não é o realmente vivido. Inacessível. Procuro mostrar reflexos, o que testemunhos escritos refletem. Confio no que eles dizem. Se dizem a verdade ou não, não é isso que importa. O importante para mim é a imagem que oferecem de uma mulher e, por meio dela, das mulheres em geral, a imagem que o autor do texto fazia delas e quis passar aos que escutaram. (Duby, 1995: 10)


Duby atrela à figura do autor a produção de certas representações sobre as mulheres, de certa forma, individualizando-a e estereotipando-a. Na perspectiva crítica que adota, os textos literários não são discursos produzidos em uma determinada época, instituindo as relações sociais que a caracterizou. São apenas reflexos. Deixando de analisar os mecanismos produtores da realidade, Duby alinha-se às descrições de imagens que apareceram assim naturalizadas.

De maneira geral, os textos encontrados sobre as mulheres do medievo limitam-se a trazer uma figura da mulher no singular, como se uma imagem comportasse todas as possibilidades de existência das mulheres. Por meio de uma, as imagens das mulheres em geral aparecem, sem muita distinção de posição social, tempo ou lugar, dentro de um modelo de representação social unívoca.

Adotando o conceito de Representação Social forjado por Denise Jodelet, que a define como "uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, que tem um objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social" (Jodelet,1994:36), pode-se dizer que este tipo de recorte sobre a Idade Média, ao se embasar em apenas poucas das possíveis representações das mulheres, promoveu uma série de generalizações e essencializações que acaba por criar e reatualizar o discurso da mulher como Eva, pecadora e fonte do pecado, que tenta assim justificar a sua submissão e o seu aprisionamento.

"Essa política do apagamento", corrente na historiografia Medieval, induz a uma história de silêncio. Grandes mulheres e as mulheres, de forma geral, que viveram neste período, ativas em todas as dimensões da sociedade, se perderam pois; "o que a história não diz, não existiu". (Navarro Swain, 2000: 13).

No entanto, algumas pesquisadoras trouxeram à luz uma série de personagens femininas: exemplos apenas do silencio da história, Andrée Michel, em seu livro intitulado "O Feminismo" (Andrée Michel, 1982), reserva um capítulo para mostrar a condição das mulheres no período compreendido entre a queda do Império Romano e o fim do Renascimento. A escolha de um período assim tão longo, apesar de conduzir a grandes generalizações, tem o mérito de revelar as lacunas falocêntricas da história, trazendo à tona uma série de personagens, esquecidas e silenciadas.

A idéia pré-concebida da historiografia contemporânea, que "divide" o mundo a partir de um esquema binário, vai faze-lo apagar as mulheres em sua existência e pluralidade, tirando delas sua múltipla possibilidade de ação no social. Dentro dessa perspectiva desapareceram da história personagens como Hilda de Whitby, que no século VII fundou sete mosteiros e conventos, ou quem sabe a religiosa alemã Hroswitha de Gandersheim, autora de dezenas de peças de teatro. Em Bizâncio, numerosas eram as mulheres na universidade. Anna Comnena fundou em 1083 uma nova escola de medicina onde lecionou por vários anos. Eleonora da Aquitânia, enquanto rainha, desempenhou um importante papel político na Inglaterra e fundou instituições religiosas e educadoras. No mundo Islâmico, entre os séculos VIII e IX, as mulheres conheceram a glória: grandes religiosas, mulheres cultas, teólogas, poetisas e juristas, rainhas que governaram com sucesso. Sitt Al Mulk, irmã do califa do Egito, assumiu o poder com a morte do irmão em 1021 e o exerceu com muita competência e vigor, explicita esta. (Andrée Michel, 1982).

Segundo a historiografia, o século XII é caracterizado por um movimento de disciplinarização que se tentou impor à sociedade e, em especial, às mulheres. Os discursos proferidos por padres, moralistas, tentarão delimitar as funções e os espaços das mulheres de acordo com a sua suposta "natureza feminina". Como sublinho Foucault :

"As disciplinas são portadoras de um discurso que não podem ser a do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade da soberania. As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra , não o da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra "natural", quer dizer, da norma (...)". (Foucault, 2000: 189)

No entanto, apesar desse suposto movimento de disciplinarização, as mulheres não abandonaram seus espaços de atuação sem resistências. Afinal, a imposição de uma disciplina já pressupõe condutas não submetidas ao "natural" do discurso. E, além disso, a existência de um discurso disciplinador das condutas, principalmente femininas, na sociedade européia do século XII, não significa necessariamente a obediência a ele. A reiteração incessante de normas nos escritos dos padres e moralistas leva a crer, inclusive, em uma inominável dificuldade em "domar" os espíritos e criar os corpos sexuados daquele tempo e não exatamente em uma aceitação dessa suposta "natureza", que determinaria funções, papéis, espaços e personalidades diferenciados para homens e mulheres.

No século XIV, na França, é empregado um conjunto de meios de repressão às mulheres por parte da Igreja e pela monarquia. Porém, essas medidas também foram enfrentadas com protestos. Chistine de Pisan, historiadora e poetisa, recusou-se a aceitar a exclusão das mulheres das universidades e reivindicou uma verdadeira educação para elas: "Chistine de Pisan desenvolveu dois temas essenciais que mais tarde se ampliarão no pensamento feminista: a necessidade da educação feminina e a aspiração a uma sociedade pacífica". (Andrée Michel,1982: 34)

Muitas outras poderiam ser citadas; rainhas, suseranas, médicas, educadoras, astrólogas, teólogas, comerciantes, trabalhadoras braçais, uma imensidão de mulheres que foram apagadas da história. No entanto, não encontramos vestígios de sua existência na historiografia, mesmo tendo notícia de inúmeras mulheres do período medieval que se destacaram em vários setores da sociedade, que produziram e deixaram seus vestígios e suas imagens em textos e iluminuras. Ainda hoje, o discurso de autoridade da figura feminina como algo raro, quase inatingível, só decodificado e ressemantizado através do olhar do outro ainda predomina na Academia. As possibilidades que fogem a determinadas regras parece ser deixado de lado, esquecido, eliminando assim a multiplicidade da história. Tânia Navarro Swain, em seu texto "De deusa à bruxa: uma história de silêncio" (Navarro Swain,Humanidades, s/d) faz alusão a uma coleção de iluminuras que trazem à tona uma série de atividades femininas inimagináveis dentro da historiografia tradicional:

"Um pequeno livro, intitulado The medieval woman –a illuminated of postcards, publicado no Canadá, em 1991, mostra através da reprodução de iluminuras do século XIII ao XVI, grande parte das atividades das mulheres, que aparecem como guerreiras, defensoras de seus castelos, construtoras de catedrais, mineiras, músicas, letradas camponesas, fiandeiras, caçadoras, pintoras etc." (idem:54)

Parte da historiografia da segunda metade do séc. XX, no que diz respeito à figura feminina na Idade Média, se propõe a trazer um novo olhar e novos questionamentos acerca do assunto. Mas, apesar desses novos caminhos, os escritos sobre as mulheres, de modo geral, tendem a simplesmente reproduzir o discurso da época sobre elas como se refletisse a realidade. Baseada em documentos escritos por homens, na sua maioria padres e moralistas, que segundo alguns autores, são os únicos meios de acesso à vida feminina, a historiografia vem produzindo uma realidade sobre as mulheres simplesmente descritiva e sem maiores críticas às suas fontes. No entanto, quando um autor "descreve" algo sobre determinado tema, não está simplesmente "relatando", mas produzindo uma realidade sobre ele. G. Duby afirma que:

Em um tempo em que a Igreja conservava ainda quase inteiramente o monopólio da escrita e pelo qual quase exclusivamente o pensamento dos eclesiásticos é acessível ao historiador, são os moralistas que mais claramente parecem obsedados pela preocupação com os prazeres condenáveis que, sem nenhuma dúvida, as mulheres, no gineceu, têm sozinhas ou então com suas companheiras e com as crianças. (Duby e Ariès (orgs), 1990: 90-91)

Duby parece esquecer-se de que, "em um tempo em que a Igreja conservava o monopólio da escrita", muitas foram as monjas, as educadoras e as abadessas que deixaram seus escritos, hoje esquecidos pela história. Mulheres como Heloísa, abadessa de Cluny, deixaram vários vestígios de sua existência. Porém, personagens como ela foram tratadas pela história como uma exceção. Pierre, o venerável, abade de Cluny, em uma carta datada do ano de 1142, descreveu-a como uma mulher que desde a sua juventude causou espanto. Seu desprezo pelas causas mundanas e seu apego pelos estudos fez dela uma figura conhecida na França. Era "até mesmo" capaz de sobrepujar muitos homens em termos de cultura.

Nesse trecho, é importante ressaltar também um outro ponto. G. Duby passa por um assunto que raramente é discutido pela historiografia: "os prazeres condenáveis que, sem dúvida, as mulheres, no gineceu, têm sozinhas ou então com suas companheiras e com as crianças". Quais seriam essas práticas que tanto perturbaram os moralistas da época? A masturbação poderia ser esse prazer individual ou então compartilhado com outras mulheres. Seria o lesbianismo uma prática mais comum do que imaginamos? O que é a criança que surge nesse documento? Meninas? Meninos? A que idade se refere? Que prazeres são esses, vividos pelas mulheres entre si e descritos por Duby como prática geral, e não como exceção, conforme proposto inúmeras vezes na historiografia tradicional? Em outro trecho o autor irá explicitar melhor esses "prazeres", não como uma exceção, mas como uma prática comum.

"Pois a mulher, a jovem mulher, lê-se em uma das versões da vida de santa Godeliève composta no início do século XII, está sempre entregue ao aguilhão inaceitável do desejo; ela o satisfaz comumente na homossexualidade, e essa suspeita grave é instigada pela prática geral de dormir vários do mesmo sexo na mesma cama". (Duby e Ariès (orgs), 1990: 91)

Interessante é que, poucas vezes, os (as) historiadores (as) assumiram uma postura crítica em relação aos discursos sobre as mulheres em determinado período da Idade Média. Fazendo dos discursos e interpretações dos monges ou eclesiásticos o seu próprio discurso, a historiografia igualou a tentativa de normatizar a vida social, empreendida pela Igreja, com a própria realidade vivida por aquela sociedade. Antes de qualquer coisa, é preciso lembrar que os escritos deixados pelos "homens da fé" transmitem um modelo ideal, têm uma pretensão geralmente educadora, semelhante a dos sermões executados nas missas. Ou seja, provavelmente tentam regularizar condutas nada "obedientes", remetendo assim a indícios de realidade. As normas são elementos de domesticação e dão indícios para o que aconteceria na materialidade das relações; não se pode normatizar aquilo que não existe.

Dentro desse exercício de "reprodução" largamente utilizado pelos (as) historiadores (as), hoje, as mulheres, tratadas na historiografia no singular, como iguais, obscurecidas por uma representação unívoca, compartilhariam de uma mesma sociedade, uma mesma cultura, uma mesma "sina" que se estende desde a Península Ibérica até o Sul do Danúbio, das primeiras instalações bárbaras até a primavera dos tempos modernos. Com esta prática, a historiografia demarca o espaço e o corpo das mulheres, outrora delimitado por outros (monges, eclesiásticos) que tentavam impor uma regra: o quarto, o doméstico, o privado. As mulheres, vistas como fracas e inclinadas ao pecado, teriam que ser mantidas sob as rédeas, trancafiadas, constantemente vigiadas pelo senhor. G. Duby observa que:

O dever primeiro do chefe da casa era vigiar, corrigir, matar se preciso, sua mulher, suas irmãs, suas filhas, as viúvas e as filhas órfãs de seus irmãos, de seus primos e seus vassalos. O poder patriarcal sobre a feminilidade via-se reforçado, porque a feminilidade representava o perigo. Tentava-se conjurar esse perigo ambíguo encerrando as mulheres no local mais fechado do espaço doméstico, o quarto (...).(Duby e Ariès (orgs), 1990: 88)

Georges Duby, em seu texto "O perigo: as mulheres e os mortos" (Duby e Ariès (orgs), 1990: 88) mantém a mesma metodologia de trabalho e de análise utilizada em seus outros trabalhos. Para o autor, as mulheres "bem-nascidas" apareciam como uma ameaça contra a ordem estabelecida e por isso deveriam ser vigiadas e subjugadas. Porém, o autor não faz menção nem a local e nem a data. Será que essa era uma prática corrente em todos os tempos e lugares? O quarto, local indicado por Duby, era o espaço indicado para o "aprisionamento" das damas. Além de encerrá-las, era preciso ocupá-las. Considerava-se o ócio bastante perigoso. O tempo tinha que ser dividido entre orações e trabalhos.

Duby acredita que "A sociedade doméstica era atravessada por uma separação nítida entre o masculino e o feminino (...)" (Duby e Ariès (orgs), 1990: 91) e o encontro, no interior da morada, entre o senhor e a dama tinha uma única função: a fecundação. Porém, vários outros encontros se produziam nesse ambiente, com outros propósitos. Apesar de a todo momento o autor, em seu texto, tentar delimitar os espaços pré-destinados às mulheres dentro de uma "separação nítida" entre masculino e feminino, e reafirmar que existia uma constante vigilância sobre elas, ele próprio irá mostrar que muitos encontros "ilegítimos" se consumavam ali. É interessante notar que apesar da constante imagem que se tenta passar no texto da clausura feminina, as práticas sexuais das mais diversas, com as pessoas mais diversas, parecem ser constantes no cotidiano das moradas descritas. Como diz o autor: "Nesse espaço mal compartimentado, era fácil aos homens introduzir-se no leito das mulheres; se se acredita nos moralistas e nos romancistas, a passagem inversa era no entanto mais freqüente(...)" (Duby e Ariès (orgs), 1990: 91). Esta "promiscuidade inevitável" gera uma preocupação para o senhor, a manutenção da honra; "(...) é evidente que nos tempos feudais a honra, empanada pela vergonha, era assunto masculino, público, mas que dependia essencialmente do comportamento das mulheres, isto é, do privado". (Duby e Ariès (orgs), 1990: 93) O autor trata como "evidencia" sua própria interpretação e solidifica a idéia de uma divisão entre espaço público e privado como uma constante na História. Ora, como discute Carole Paterman (Paterman,1988alta referência) esta separação foi também construída, a partir da própria instituição da "diferença sexual" como natural.

Para G. Duby, a conduta das mulheres não é um problema só delas e sim de toda a família, colocando no cerceamento de sua conduta e na garantia dessa a conservação de toda a honra familiar. Para o autor, usando o pressuposto de que a honra da família depende do "bom comportamento" das mulheres cria um mecanismo de legitimação de apropriação e domesticação do corpo feminino. Porém, nada se fala sobre o comportamento dos homens para a manutenção da honra. O que vemos aqui é a existência de uma dupla moral.

Apesar de uma intenção explícita de rever as tradicionais histórias da Idade Média , das quais as mulheres estão ausentes, Duby , ao mesmo tempo que nos fornece indícios preciosos sobre a presença e as práticas das mulheres no social e entre elas , esbarra em suas condições de produção de sujeito masculino ao reiterar as representações habituais e globalizantes a respeito das mulheres

Outros olhares


Para Charles de la Roncière, as mulheres são vigiadas, ato apoiado pela sociedade e instigado pelos moralistas. Aos três anos de idade, as meninas serão separadas dos quartos dos meninos, mas ainda tem o direito de sair pelo bairro para brincar. Aos doze, suas liberdades chegam ao fim e são enclausuradas em suas casas e observadas constantemente pelos irmãos e pais. As voltas pela cidade, os passeios e tagarelices em particular são proibidos. Acredita-se que só o trabalho doméstico e em silêncio, juntamente com a oração, vencerão os sonhos alimentados por elas. A chegada do casamento suaviza esse confinamento. Todavia, apesar desse abrandamento, as esposas encontram-se submetidas ao bel-prazer de seus maridos.

Entretanto, apesar da imagem dessa vida de claustro das mulheres da Idade Média, o autor se pergunta: qual seria o espaço público reservado a elas? As casas, por mais severamente enclausuradas que fossem, conservavam para o exterior as aberturas costumeiras, as portas e janelas. O mundo fora do privado parece limitar-se ao olhar para o exterior, às idas ao mercado e à igreja. Como observa Charles de la Roncière:


A janela é, de fato, o grande divertimento e a grande tentação, maravilhosamente aberta para a rua como é, embora abrigada dos indiscretos por todo o andar e pelo anteparo eventual dos batentes articulados da persiana. Ali se espia, ali se olha; ali se conversa de um vão ao outro; ali as pessoas se fazem ver. As belas indolentes ‘ ali ficam sentadas o dia inteiro, os cotovelos no apoio, tendo na mão a desculpa de um trabalho que jamais é terminado’(...). (Duby e Ariès (orgs), 1990: 288-289)


O contato com o mundo porém, não se limitava a isso. As obrigações domésticas e religiosas levam a maior parte das mulheres para as ruas. As idas ao mercado, ao moinho, ao poço e, principalmente, às igrejas, constituem espaços privilegiados para as fugas femininas. Ali elas têm a oportunidade de passar várias horas do seu dia, sobretudo em datas de festas e nas Quaresmas. É de bom tom para as damas encontrar-se em certas cerimônias religiosas.

Para o autor, o encontro com o público é também o encontro com o alheio, com o totalmente estranho ao privado, em especial homens e rapazes. Começo, para as adolescentes, dos primeiros namoricos. Neste caso, os olhares são as primeiras iniciativas para as filhas das famílias "burguesas", que não tem o direito de conhecer sozinhas o mundo. Elas se enamoram dos galanteadores simplesmente por vê-los.

Se levarmos em consideração as asserções de Georges Duby, em que ele afirma que a morada era mal compartimentada e a introdução de mulheres e homens alheios nos leitos da casa era algo fácil, o contato com o público não seria um encontro assim tão estranho e o contato com o exterior através das janelas não proporcionaria os "primeiros namoricos".

A mesma pergunta parece acompanhar-me na maioria das leituras referente às mulheres: será que esse comportamento se aplica a todas as mulheres, de todos os mil anos do que consideramos a Idade Média e em todos os lugares? Em que segmento social? Será que a janela é o único divertimento das mulheres? Parece que não. O próprio Duby mostra outras relações e divertimentos das mulheres no gineceu. As "belas indolentes" parecem não ser tão indolentes assim, se levarmos em consideração outras damas que fundaram mosteiros, que escreveram dezenas de peças, que lecionaram nas universidades. Damas, rainhas, suseranas, médicas, comerciantes acabam sendo apagadas pelo discurso da "bela indolente". E o trabalho, e a produção das mulheres? Onde foram parar as mulheres que trabalhavam nos campos, no comércio, artesanato, na produção literária? Para que "trevas" foram relegadas? Vale lembre que Regine Pernoud em seu livro "A mulher nos tempos das catedrais" (Pernoud, 1980) contabilizou cerca de 150 profissões desempenhadas por mulheres mo período em questão.

Para Danielle Régnier-Bohler, a presença na comunidade, no espaço público, requer das mulheres uma preparação que têm como objetivo a constituição de seres suscetíveis de cumprir, no seio da sociedade, uma função considerada conveniente. Danielle Régnier-Bohler afirma que: "O mau uso do privado (corpo, sono, palavra) repercute funestamente nas engrenagens coletivas; a mulher é um instrumento que é preciso preparar para uma cuidadosa regulagem". (Duby e Ariès (orgs), 1990: 349)

A partir do Livre pour l’enseignement de ses filles, (Duby e Ariès (orgs), 1990: 350) a autora irá mostrar como as mulheres devem se comportar perante a sociedade, o que deve e o que não deve fazer, como elas devem se portar, se vestir e agir de maneira geral. A mulher, como se sabe, é "fonte do mal": deve regenerar essa sua "natureza" através do bom uso do corpo, deve respeitar o tempo próprio para cada coisa. Saber dividir as tarefas do dia torna-se a fonte de bom sono. Saber comer na hora certa e jejuar três vezes por semana para domar a carne são características de uma Dama.

Este livro, assim como outros escritos da época, é descritivo e traz um modelo ideal para as mulheres. Ele tenta cercear os comportamentos. Porém, ele não remete necessariamente a realidade. Como o próprio trecho nos diz "a mulher é um instrumento que é preciso preparar para uma cuidadosa regulagem", ela precisa ser remodelada, ela precisa ser preparada para corresponder às expectativas masculinas.

Lançando mão de um aparato teórico diferente é possível observar nas mesmas fontes utilizadas pelos autores uma outra Idade Média. Partindo do pressuposto de que a "natureza", tanto feminina quanto masculina, não existe, é difícil continuar encarando os fenômenos sociais da mesma maneira. Percebendo a diferença existente entre sexo, referente à diferença biológica, e gênero, papéis sociais (incluindo comportamentos, atitudes, traços de personalidade que, na expectativa das sociedades, são diferentes para homens e mulheres) definidos em função do sexo (mas não determinados por ele), um novo campo de análise surge: se o gênero não emana da natureza, de onde vem?

Admitindo o gênero como uma construção social, baseada em valores e experiências de socialização diferenciadas, está-se dizendo, simultaneamente, que sua acepção varia histórica e culturalmente. Dessa maneira, ficam "invalidadas" as análises anacrônicas; ou seja, aquelas que remetem à "essência" dos seres para forjar a sua argumentação. Ora, será preciso observar atentamente as especificidades de cada formação social para fazer qualquer afirmação em relação às possibilidades de atuação, à vivência, à inserção social, aos comportamentos, às representações que giram em torno de homens e mulheres. Retirando da "natureza" masculina e feminina seu poder de determinar os indivíduos, entendendo-a como um sentido constituído pelos valores sociais, que variam cultural e historicamente, para um dado biológico como qualquer outro, a pretensão é libertar o fazer historiográfico das amarras que o mantém atado ao vulgarmente denominado "discurso oficial". No que concerne especificamente a Idade Média, a intenção é escapar à homogeneização que fazem os textos de época e a própria historiografia, revelando os impasses e as resistências e sobretudo a multiplicidade nas relações e práticas sociais.

Subsídios existem para a escrita de uma renovada história das mulheres. Com uma outra perspectiva teórica, a do possível na história, utilizada para a análise das mesmas fontes utilizadas anteriormente, ou em outras que venham a ser "descobertas", é possível enxergar exatamente aquilo que os historiadores têm omitido: as fissuras, as diferenças, a multiplicidade, a complexidade, a descontinuidade, a fragmentação; enfim, a pluralidade de sentidos que o tempo e o espaço nos oferece, podem vir à tona.


Bibliografia

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2000.

JODELET, Denise. 1989). Représentations sociales : un domaine en expansion, in Denise Jodelet (dir.)Les représentationssociales, Paris, Puf, :.31-61.

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Paulo Thiago Santos Gonçalves da Silva, nascido na Paraíba no ano de 1979 e criado na capital brasileira, é graduando do curso de Bacharelado/Licenciatura em História pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Grupo de Estudos feministas GEFEM.

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