quinta-feira, 15 de abril de 2010

Notas sobre a História da Revolução Cultural Chinesa (1966-1976) - parte 1

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Notas sobre a História da Revolução Cultural Chinesa (1966-1976) - parte 1

Cristiane Soares de Santana
Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: crysthianesantana@yahoo.com.br

Resumo:
Este artigo analisa a história da Revolução Cultural Chinesa ocorrida entre 1966 e 1976. Investigando esse importante período da história recente da China. Nosso trabalho busca compreender essa tentativa de construção de um estilo específico de socialismo baseado no retorno periódico dos militantes do Partido Comunista Chinês ao trabalho no campo e nas fábricas visando, através deste contato com as massas, a criação de uma nova sociedade edificada sob um conjunto de valores morais.

Um processo de revisão política se iniciou na segunda metade dos anos 50 com as resoluções do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, onde foi reafirmada e consolidada a política de “coexistência pacífica”. Logo, a exclusividade do caminho armado para a revolução socialista desaparecia, o qual passaria a dividir espaço com a idéia da transição pacífica do capitalismo ao socialismo. A conseqüência disso foi a alteração das perspectivas políticas dos Partidos Comunistas Mundiais e sua autonomia em relação ao Partido Comunista da União Soviética (FERREIRA, 1999).
As declarações de Nikita Kruchev no XX Congresso do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas denunciando os crimes de Josef Stalin e propondo a tese da chamada transição pacífica do capitalismo para o socialismo, deram o primeiro passo para o estremecimento das relações entre a China e a URSS.
O Partido Comunista Chinês afirmava que as críticas à Stalin e a tese da coexistência pacífica eram errôneas e indicavam o crescente revisionismo do PCUS. Numa famosa carta escrita em 14 de junho de 1963, na qual o Partido Comunista Chinês recapitulava seu posicionamento em relação às teses do XX Congresso através de 25 pontos.

O princípio de coexistência pacífica de Lênin é bem claro e de fácil compreensão para as pessoas simples. A coexistência pacífica se refere às relações entre países com distintos sistemas sociais, e ninguém pode interpretá-la segundo lhe convenha. A coexistência pacífica não deve estender-se jamais as relações entre as nações oprimidas e as nações opressoras, entre os países oprimidos e os países opressores, ou entre as classes oprimidas e as classes opressoras, não deve considerar-se jamais como o conteúdo principal da transição do capitalismo ao socialismo, e menos ainda como o caminho da humanidade para o socialismo. A razão consiste em que uma coisa é a coexistência pacífica entre países com distintos sistemas sociais, no qual nenhum dos países pode, nem lhe é permitido, tocar nem sequer um só fio de cabelo do sistema social dos outros, e outra coisa é a luta de classes, a luta de libertação e a transição do capitalismo ao socialismo nos diversos países, que são lutas revolucionárias, inflamadas, de morte, encaminhadas a mudar o sistema social. A coexistência pacífica não pode, de nenhuma maneira, fazer as vezes lutas revolucionárias dos povos. A transição do capitalismo ao socialismo em qualquer país só pode realizar-se mediante a revolução proletária e a ditadura do proletariado nesse mesmo país. (CÔMITE CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA DA CHINA, 1963: 67-68).

Segundo Devillers (1975), as divergências entre a China e a URSS puderam ser apreciadas no âmbito da política estrangeira, através das críticas veladas de Kruchov a Mao Tsé Tung, ao declarar que a edificação socialista na China ultrapassava etapas. Além disso, em 1960, Kruchov retirou da China todos os peritos soviéticos desferindo um golpe bastante intenso na economia do país. A conseqüência disso foi a ruptura do Partido Comunista Chinês com o Partido Comunista da União Soviética.
Mao Tsé Tung acreditava que cada vez mais o PCUS enveredava pelo caminho não leninista e que essas mudanças no caráter do Partido acarretariam transformações na política do campo socialista e no futuro da luta do proletariado mundial.

O avanço para o comunismo quer dizer o desenvolvimento na direção de elevar a consciência comunista das massas populares. É inconcebível uma sociedade comunista em que persista a ideologia burguesa. Porém Kruchov insiste por fazer renascer a ideologia burguesa na União Soviética e trabalha como um missionário da putrefata cultura norte americana. Difunde o incentivo material, reduz as relações entre os homens a simples relações de dinheiro e fomenta o individualismo e o egoísmo.
Devido a ele, o trabalho manual volta a ser considerado como algo indigno, e o amor aos prazeres as custas do trabalho alheio, como algo honorável. (CÔMITE CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA DA CHINA, 1963: 430)

Foi justamente nesse contexto do cisma sino soviético que Mao Tsé Tung começou a refletir sobre os caminhos que a revolução na China estaria seguindo graças à crescente burocratização do Partido Comunista Chinês. Para ele, mesmo que a sociedade chinesa fosse controlada por um partido proletário ela não estaria livre de ver ressurgir as antigas práticas capitalistas.

Para Mao, la evolución experimentada por la sociedad soviética en las ultimas décadas, ha constituido y constituye la más grave y alarmante desnaturalización sufrida por el movimiento revolucionario socialista en toda su historia; según el, ha concluido con una restauración de clase, llevada a cabo por una minoría de tecnócratas y burócratas que, monopolizando las instituciones estatales colectivas y los instrumentos de producción, se ha transformado en una nueva clase dirigente, limitada y privilegiada, que excluye a la gran mayoría de las masas de la participación efectiva en la vida política y del control sobre los medios de producción, sometiéndola a la explotación económica y a la represión política, social y cultural. (PISCHEL, 1973: 14)

Em 1959, Mao Tsé Tung deixou o cargo de presidente da República Popular da China e passou a se dedicar ao trabalho de aperfeiçoamento dos quadros e das massas. O objetivo era politizar ao máximo as massas para evitar que os integrantes do Partido estivessem seguindo o caminho da rotina burocrática. Desse modo, em 1962 lançou-se o Movimento de Educação Socialista, que foi uma campanha nacional de doutrinação política e ideológica de “retificação” do partido visando afastá-lo da influência do moderno “revisionismo kruchevista” e reavivar o socialismo no seio do Partido. Esse movimento político foi a última tentativa de “retificação” dos quadros que seguiam a “linha capitalista” antes da Revolução Cultural.
A “Revolução Cultural Proletária” pode ser apreendida como um choque entre as concepções das duas elites partidárias em relação aos destinos da nação chinesa. Segundo Audrey (1976), havia duas elites na alta esfera do Partido Comunista Chinês as quais a autora identifica como “militante” e “funcional”. A “elite militante” era oriunda do período das Comunas de Shangai e Cantão, da Longa Marcha e da luta contra o Japão.
Com o crescimento do Partido, esse grupo foi reduzido e ficou sem força diante dos militantes sem passado revolucionário. A “elite militante” acentuava a transformação do homem através de uma vida de sacrifícios pessoais e sem privilégios, incentivava a participação das massas nas tarefas da direção e alimentava o desejo de implantar o coletivismo no campo e na cidade, etc.
Enquanto que a “elite funcional” era herdeira da burguesia e dos intelectuais compreendendo artistas, engenheiros, técnicos, médicos e professores. Ao longo dos anos, sua influência cresceu devido ao aumento da complexidade das relações entre Estado, Partido e Administração, além do avanço dos setores modernos da economia o que promoveu a ampliação dos quadros da “elite funcional”.
A preocupação desta “elite militante” com esse grupo já se expressava desde os princípios da revolução, pois nos primeiros anos após a fundação da República Popular tentou-se enquadrar esse grupo aos novos padrões morais impostos pelo regime através de “campanhas de retificação”. No entanto, estas não foram suficientes para que a transformação do corpo político partidário se sucedesse.
A história da China no século XX foi marcada por inúmeras campanhas de denúncias contra ex-membros do Kuomintang, ex-fazendeiros, quadros vistos como não revolucionários, intelectuais, etc. Em 1951, apenas dois anos após a fundação da República Popular da China, Mao Tsé Tung lançou a campanha dos “três anti”.
O “três anti” foi uma campanha lançada entre os trabalhadores dos departamentos governamentais e das empresas estatais, que visava lutar contra os três “vícios”: a corrupção, o desperdício e a burocracia. O governo tinha como objetivo identificar quadros comunistas que estivessem envolvidos em diversos casos de ganhos ilícitos, desvios de dinheiro, desperdício com promoção de festas às custas do Estado, num momento em que o país passava por problemas econômicos e tentava se restabelecer dos anos de guerras civis ocorridas antes da fundação da República Popular da China em 1949. A segunda campanha foi denominada de “cinco anti”, a qual foi lançada em 1952 lutando contra cinco desvios: suborno, fraude, evasão fiscal, roubo e desvio de informações econômicas. (TSÉ-TUNG, 1977, v. V, p.67)
Essas duas campanhas tinham como objetivo estabelecer o controle sob os membros do partido e da sociedade. Segundo Chang (1994), o governo enviava equipes às províncias para analisarem o comportamento das autoridades e dos funcionários públicos suspeitos, os quais eram encaminhados para se reeducarem no campo ou na fábrica através do trabalho produtivo, caso tivessem cometido algum crime. Segundo

Mao Tsé Tung, em um texto escrito em 1952, Deve-se dar tanto destaque à luta contra a corrupção, o desperdício e a burocracia como à luta pela eliminação dos contra revolucionários. Tal como nesta última, as amplas massas - incluindo os partidos democráticos e pessoas de todos os sectores sociais - devem ser mobilizadas; esta luta deve ser largamente propagandeada; os quadros dirigentes devem assumir pessoalmente a direcção e lançar-se ao trabalho; e as pessoas devem ser chamadas a confessar abertamente o seu mau procedimento e a apontar as culpas dos outros. Em casos de menor gravidade, os culpados devem ser demitidos do cargo, punidos ou condenados à penas de prisão, e os piores de entre eles devem ser fuzilados. (sic., TSÉ-TUNG, 1977, v. V, p.70)

O Movimento Cem Flores (1956-1957) estimulou o debate intelectual através do lema - que desabrochem cem flores, cem escolas do pensamento. Com o desejo de saber o que a intelectualidade chinesa pensava sobre o Partido Comunista, foi iniciado tal movimento, o qual obteve como saldo muitas críticas em relação ao PCCh. A conseqüência disso foi o lançamento da Campanha Antidireitista em 1957, através da qual se promoveu uma luta contra os “elementos de direita”, os quais foram enviados ao campo para passarem por uma “reeducação ideológica”.
Após as sucessivas reformas agrárias e o Grande Salto para Frente (1958), iniciou-se um processo de restauração econômica liderado pela “elite funcional”, representada por Liu Shao-Chi e Deng Xiaoping. Em contra ofensiva, foi lançado em 1964, o Movimento de Educação Socialista por meio do qual se identificaram os quadros comprometidos com a “linha burguesa”. Porém, como foi dito anteriormente, essas sucessivas tentativas de combater a “elite funcional” no seio do Partido não foram suficientes, tendo como continuação desse embate a ocorrência da Revolução Cultural, a qual pode ser entendida como uma contra ofensiva dessa “elite militante”.
A partir de 1963, desencadeou-se uma luta ideológica e política no grupo dirigente chinês representado por uma “elite militante” adepta das idéias de Mao Tsé Tung e contrária às idéias e ao comportamento da maioria do partido, constituído pela “elite funcional”. Com o objetivo de modificar a orientação política geral do país esse grupo deu início a revolucionarização dos setores da cultura, do ensino e da propaganda.
A Revolução Cultural teve início com uma crítica literária a uma peça de teatro chamada “A destituição de Hai Rui”, escrita pelo vice-prefeito de Xangai, Wu Han, a qual promoveu uma luta no seio do Partido, logo que tratava da estória de um funcionário antigo que havia sido vítima do imperador tirânico injustamente. Na verdade, essa peça fazia menção à destituição do Marechal Peng Dehuai, ocorrida em 1959, quando este escreveu uma carta tecendo críticas às políticas econômicas adotadas durante o Grande Salto para Frente.1
Foi escrita uma crítica sobre esta peça na imprensa por Yao Wenyuan, jornalista e membro da seção de propaganda do Comitê Municipal de Shangai. Por trás desta crítica estava o descontentamento de Mao Tsé Tung com o grupo da “elite funcional”, os quais haveriam abandonado as suas posições socialistas.
Em meio a essa luta no interior do alto escalão, o documento A Circular 16 de maio promoveu uma verdadeira reviravolta na Revolução Cultural, já que rompeu com o procedimento de lutas secretas no Partido e trouxe à tona as contradições existentes entre as facções, convocando a população a lutar contra os quadros do alto escalão (NAVES, 2005). De modo que,

o Partido deve levar, bem alto erguido, o grande estandarte da revolução cultural proletária, denunciar a fundo a posição reacionária burguesa desse grupo de “sumidades” acadêmicas anti-Partido e anti-socialista, criticar totalmente e todas as idéias reacionárias burguesas dos meios acadêmicos, pedagógicos, jornalísticos, literários, artísticos e do Mundo da edição, assim como assegurar a direcção da cultura em todos os domínios. (sic., DEVILLERS, 1976: 215)

Por trás do desencadeamento de um grande movimento de massa, visava-se a transformação ideológica e cultural do país. O apelo às massas teve como resultado o surgimento de críticas públicas aos quadros dirigentes e às práticas político-administrativas desenvolvidas até então.

De facto, a população tinha que ser mobilizada para criticar tudo o que, na sociedade, sofria a influência da tradição. Era o caso da pedagogia, da literatura, da arte, aspectos da Revolução Cultural (...). Era igualmente necessário que o povo pudesse criticar o funcionamento das engrenagens do Estado. (DAUBIER, 1974: 21).

1 O Grande Salto para Frente foi um conjunto de medidas econômicas que visava a reorganização e a aceleração da produção no campo através da iniciativa e mobilização das massas. A implantação de tal idéia enfrentou inúmeros problemas, tais como as calamidades naturais e a retirada dos técnicos soviéticos devido à ruptura das relações entre os dois países, o que contribuiu para um processo de retração econômica que se instalou no país no final dos anos 50 e início dos anos 60. (NAVES, 2005)


Revista de História da UNICAMP

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