terça-feira, 28 de setembro de 2010

ALTA IDADE MÉDIA OCIDENTAL





ALTA IDADE MÉDIA OCIDENTAL

Michel Rouche

Três séculos se passaram. Clóvis foi batizado em 499 e recebeu as insígnias de cônsul de Roma (quer dizer, de Bizâncio, capital do Império Romano amputado em suas províncias ocidentais, que os bárbaros ocuparam). Aboliu-se o mundo greco-romano no Ocidente, onde começam os nossos tempos; como diz Maquiavel, "os homens, de César e Rompeu que se chamavam, tornaram-se João, Pedro, Mateus". No Oriente bizantino o sistema romano permanece intacto e, como todas as coisas, pouco a pouco vai mudar completamente; o helenismo torna-se o único senhor.
Barbarização do Ocidente, porém menos sob os golpes dos germanos, admiradores da grandeza romana, que em consequência de sua tomada do poder político; humilhada por não mais deter o comando, a velha aristocracia dos notáveis, ao mesmo tempo pais das cidades e nobreza funcional no aparelho romano, já não encontra sentido em nada, cruza os braços e perde o que fazia do mundo romano uma sociedade "civilizada": uma vontade inconsciente de autoestilização; apenas a Igreja, para seus próprios objetivos, mantém um pouco dessa vontade.
Barbárie, cultura: as sociedades ditas bárbaras têm uma cultura e as que se chamam civilizadas adquirem uma à custa de esforços, para o melhor ou para o pior; puritanos, estetas, sociedades altamente militarizadas ou espírito de empreendimento capitalista fazem parte também do segundo gênero. O drama das grandes invasões desenrolou-se menos na ruína do aparelho imperial, na economia ou na demografia que em outro campo, onde se distinguem, por exemplo, pessoas que leem e outras que não fazem disso uma questão de honra, populações treinadas para trabalhar duro e outras que não passaram por esse treinamento. Tal vontade inconsciente de se esforçar não se deve a escola ou a instituições, que são, antes, consequências disso; é [pág. 404]
inculcada pelo que erroneamente se denomina educação, ou seja, pelo exemplo que, sem querer, apresenta um grupo social em que se reproduz essa vontade de autoestilização. Sem querer, por certo, pois, à menor suspeita de que os pais formulam frases que não assimilaram, desfaz-se a evidência da ficção e os filhos já não os ouvem. Para terem crédito, os sermões paternos precisam da garantia de uma força real. Ora, no Ocidente, com as grandes invasões do século V, tal força se esvaece, interrompe-se portanto a tradição de autoestilização e inicia-se o que é para nós "a noite da Alta Idade Média". Isso desvenda um traço antropológico: o esforço cultural, esse trabalho de autoeducação que se pratica apenas em certas sociedades e, como toda tradição, não poderia se incutir deliberadamente ou à força. Esse esforço, pois, nada tem em comum com o que os críticos chamam de necessidade do trabalho e da repressão: nenhum voluntarismo pode substituir as realidades da força ou minorar a humilhação; seria antes um desastre. O esforço sobre si mesmo nada tem de necessário, ainda que permaneça eficaz; assemelha-se mais a uma ambição, a um jogo, a um luxo, até a um esnobismo. E alguns detestam a cultura por isso mesmo, por seu esforço contra a natureza, e não só por seu conteúdo de classe, o que quer que pretendam.


Paul Veyne

Em 584 o rei Chilperico teve um filho que "mandou criar no domínio de Vitry-en-Artois, para que, dizia, não lhe ocorresse uma desgraça se o vissem em público e não morresse". Em poucas palavras, Gregório, bispo de Tours, nos dá o tom exato da vida privada na Alta Idade Média. Um fato fundamental acaba de acontecer ao rei: nasceu-lhe um menino. Só o sexo masculino é digno de interesse. Silêncio sobre a mãe, da qual não sabemos sequer o nome. Talvez fosse uma concubina. Tão logo nasce, o menino é enviado, com uma ama-de-leite certamente, da cidade — Cambrai — para o campo. Deve-se esconder a infância — esses anos tão frágeis —, fazer com que seja vivida isoladamente, para evitar a desgraça. O mundo exterior é tão ameaçador! Mal ocorre o nascimento, e o pai já pensa na morte. Com efeito, dos cinco filhos de Chilperico só este sobreviverá, o futuro Clotário II, mas já nos permite delinear o cenário da vida privada na Alta Idade Média: amor, violência, angústia e morte, não obstante a busca da felicidade nos confins de uma propriedade agrícola.
Com relação à Antiguidade romana, a vida privada torna-se efetivamente um fator predominante da civilização, para não dizer o mais importante. A mais evidente prova disso é o eclipse da cidade diante do campo. Antes a alegria de viver estava nas ruas e nos grandes monumentos urbanos; agora se refugia nas casas e nas cabanas. Antes, com suas leis, tropas e edis, o Império se honrara em facilitar a vida pública como ideal de vida; agora, com os reinos germânicos, dilui-se o culto da urbanidade em proveito da vida privada. Para os recém-chegados, os germanos, quase tudo é do domínio privado. O leitor não se surpreenderá por me ver falar mais da Gália do Norte que da Gália meridional, ao sul do Loire. Esta última, que até o século IX permaneceu mais romana em espírito, não deixou documentação sobre a vida privada. Bem poucos autores aquitanos ou provençais nos descreveram o casamento ou os funerais de seus contemporâneos, a mesa ou o leito. Tudo que conseguiram foi assistir, impotentes, à lenta destruição das estruturas públicas galo-romanas que nos pintam desolados, à intrusão de novos gêneros de vida que os deixam horrorizados, podendo apenas — os melhores dentre eles — reagir de imediato por um esforço de cristianização dos povos pagãos provenientes do norte ou do leste. Em contrapartida, estes últimos nos deixam perceber, por suas leis e suas querelas com a Igreja, quanto valorizam os bens pessoais, o alimento, o corpo, as mulheres, os grupos familiares, as vinganças e os medos, a agressividade e as esperanças, as concepções do sagrado, enfim, o acesso aos segredos do indivíduo. Na realidade esse desequilíbrio do quadro constitui a história, desde o norte até o sul, de uma invasão da privacidade.

História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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