terça-feira, 28 de setembro de 2010

A condição da mulher na Idade Média (parte 2)

Os estatutos legais
Para que se possa fazer uma análise da situação da mulher na Idade Média é necessário conhecer o universo comum a uma nobre dama em seu castelo feudal, a uma esposa burguesa (habitante da cidade) e a uma pobre serva camponesa. Um dos caminhos para se chegar a uma conclusão é o de investigar os estatutos legais e religiosos que eram impostos e afetaram as esposas medievais, outro é o de examinar as idéias vigentes então sobre o casamento a partir da literatura desse período. Quanto às atividades diárias das esposas, existem manuscritos impressos em madeira e também pinturas que mostram as diversas ocupações dessas mulheres. Segundo Yalom, nada é mais valioso do que os poucos e preciosos documentos que foram preservados e registraram uma visão particular da esposa e de sua situação. A partir dessas diferentes fontes é possível tecer teia da vida das mulheres, principalmente a das casadas. A subordinação feminina, imposta pelo clérigo, permanece útil à sociedade e o casamento é o seu retrato. Por isso, o poder marital sobrevive ao desaparecimento do regime feudal.
Tradicionalmente, as uniões nas sociedades rurais tinham mais um caráter de reunião de interesses conjugados com vistas à sobrevivência dos esposos e de sua prole que um caráter de união sentimental. Os noivos, muitas vezes mal se conheciam e eram obrigados em alianças de interesse. A formalização da união era operada entre os responsáveis masculinos dos noivos. A partir da metade do século XII, as leis da Igreja ou leis canônicas trouxeram alterações que tiveram efeitos duradouros. Primeiramente, as tradições pagãs foram progressivamente incorporadas conforme rituais religiosos e sacralizadas. Os pretendentes foram induzidos a casarem-se na presença do chefe espiritual da igreja local que substituía a autoridade do pai. A cerimônia, em seus primórdios, era realizada no parvis* da igreja, antes de adentrá-la em uma segunda fase e reproduzir o ambiente acolhedor do interior da casa paterna. Em seguida, o consentimento dos pais foi relegado, e o desejo mútuo dos futuros esposos estabelecido como critério principal para tornar um casamento válido.
“O matrimônio era, portanto, uma instituição pela qual os homens eram confirmados como os donos de suas esposas em termos religiosos e legais. Mas era também uma união que tencionava providenciar o bem-estar de ambas as partes e, eventualmente, o das crianças”.79
Ao contrário dos senhores, os camponeses fazem da miséria comum laço conjugal recíproco. Para eles, o casamento era de uma certa forma um acordo econômico em que duas pessoas reuniam recursos suficientes para sobreviverem juntas. O dote, muitas vezes miseráveis trazidos à futura comunidade de bens pela noiva consistia em alimentos, animais ou terra, bens considerados essenciais para o início de uma nova família. A cerimônia, realizada em reuniões informais, era essencialmente uma transferência legal da noiva para o noivo, presidida pelo pai ou, pelo representante masculino do noivo, em negociação com o pai ou, pelo representante masculino da noiva. O servo e sua esposa não possuíam nada, tinham somente o gozo comum da casa, dos móveis e utensílios. O homem não tinha razão para procurar tornar- se senhor da mulher, que nada possuía, pelo contrário, os laços de trabalho e de interesses que os uniam elevavam a esposa ao nível de companheira. A pobreza continua quando a servidão é abolida. É somente nas pequenas comunidades rurais e entre os artífices que se vêem os esposos viverem de maneira menos desigual. Yalom afirma que é a partir da condição de servo que se processa a passagem da família patriarcal à família conjugal.
A sociedade medieval era essencialmente hierárquica: servos e camponeses serviam a senhores e damas, e todos, por sua vez, serviam ao rei. Dentro do sistema feudal, a esposa – independentemente de sua classe social, era subserviente ao marido. “Tanto a lei francesa como a inglesa foi mais além ao declarar que a mulher que matasse seu marido seria julgada por traição, em vez de ser julgada apenas pelo crime, já que havia tirado a vida de seu amo e senhor”. 80 Um marido poderia dispor das propriedades de sua esposa, suas roupas, suas jóias e roupas de cama, e ainda tinha o direito de bater nela, caso não cumprisse seus desejos. Na maioria das regiões, os maridos podiam punir suas esposas da maneira que lhes conviesse, menos com o assassinato.
O espancamento era uma prática legalmente aceita, sancionada pelos costumes que permitiam aos maridos impor a sua autoridade sobre sua mulher. Era tema de sabedoria popular e da literatura, e alimentava a imaginação dos caricaturistas, que desenhavam imagens reversas de esposas batendo em seus maridos. Mas a realidade estava longe de ser cômica, como mostravam os registros da corte, que perdoavam com freqüência o comportamento brutal dos maridos que abusando de suas esposas. Mesmo quando familiares ou vizinhos intervinham e traziam o problema aos olhos da corte, o marido recebia apenas uma pequena multa ou advertência de como “receber sua esposa em sua casa e tratá-la cordialmente”.81 O espancamento legal das esposas não desapareceu com a Idade Média.
Quando, ao fim das convulsões da Alta Idade Média o feudalismo se organiza, a condição da mulher apresenta-se muito incerta. O que caracteriza o direito feudal é a confusão entre soberania e propriedade, entre direitos públicos e direitos privados. É o que pode explicar o fato da mulher se encontrar ora rebaixada ora elevada pelo regime. A princípio, vê se desprovida de todos os direitos privados porque não tem nenhuma competência política.
Efetivamente, até o século XI a ordem baseia-se na força, e a propriedade, no poder das armas. Um feudo, dizem os juristas é uma terra que se mantém em troca de serviço militar. A mulher não poderia pretender a um domínio feudal, uma vez que seria incapaz de defendêlo.
Sua situação muda quando os feudos se tornam hereditários e patrimoniais.
No direito germânico, viram-se sobrevivências do direito materno: na ausência de
herdeiros, a filha podia herdar. Daí por volta do século XI o feudalismo admite também a sucessão feminina. O serviço militar é sempre exigido dos vassalos, e a sorte da mulher não melhora pelo fato de se tornar herdeira, ainda assim ela precisaria de um tutor masculino; e é o marido que desempenha esse papel, ele é quem recebe a investidura, que usa o título e tem o usufruto dos bens. “(...) a mulher é o instrumento através do qual a propriedade se transmite e não sua possuidora. Não se emancipa com isso e é, em suma, absorvida pelo feudo, faz parte dos bens imóveis. A propriedade não é mais a coisa de família como no tempo da gens romana, pertence ao suserano, à mulher também”.82 É ele quem determina a escolha de uma esposa, e, quando essa tem filhos, é antes a ele que ao marido o direito de propriedade sobre os filhos que serão vassalos e defenderão os bens do senhor. A mulher é, portanto, escrava da propriedade e do senhor, e recebe a “proteção” de um marido que lhe é imposto. Poucas foram as épocas em que suas condições tenham sido mais duras.
Entretanto, “o caso de uma mulher nobre, como herdeira, significa uma terra e um castelo aos pretendentes que disputam a presa e, às vezes, a jovem não tem ainda doze anos quando o pai ou o senhor a doa de presente a algum barão”.83 Multiplicar os casamentos é para o homem multiplicar suas propriedades, por isso mesmo os repúdios das esposas são numerosos com a hipócrita anuência da Igreja que proibia o casamento entre parentes até o sétimo grau, pretexto para sua anulação posto que o divórcio era motivo de excomunhão.
Inúmeras epopéias nos mostram o rei ou suserano dispondo tiranicamente das jovens e das viúvas. Vê-se também que o esposo tratava, sem nenhuma consideração, a mulher que recebera de presente. Maltratava-a, esbofeteava-a, arrastava-a pelos cabelos, batia-lhe, o marido “castigava razoavelmente” a esposa. Essa civilização guerreira só tinha desprezo pela mulher. O cavaleiro não se interessava por elas. Seu cavalo parecia-lhe um tesouro bem mais valioso. Nas canções de gesta, são sempre as jovens mulheres que procuram os jovens mancebos. Casadas, exige-se delas uma fidelidade sem reciprocidade. O homem associa a mulher à sua vida. “Maldito seja o cavaleiro que vai pedir conselho a sua dama quando deve ir ao torneio”.84 E, em Renaud de Montauban, lê-se : “(...) não vos ocupeis de nossos negócios. Nossa função é lutar com o gládio e o aço. Silêncio!” 85

Fig. 18: La Défense du Chateau. Boccace. Des claires et nobles femmes.
Collection Spencer MS. 33. f. 63v. France, vers 1470. New York Public Library.
Fonte: Carnet d’Adresses des Dames du Temps Jadis, Éditions Solar : Paris,1988.

Em determinados tipos de sociedade, a mulher partilhava, por vezes, a vida rude dos homens. Ainda jovem, era treinada em todos os exercícios do corpo, montava a cavalo, caçava falcão, não recebia quase nenhuma instrução e era educada sem pudor. Ela é quem recebia os hóspedes do castelo, quem cuidava de suas refeições, de seus banhos, quem os “acariciava” para ajudá-los a adormecer. Embora mulher, ela tinha como tarefa caçar animais ferozes, realizar longas e difíceis peregrinações. Quando o marido se ausentava, era ela quem defendia a terra senhorial. Essas castelãs eram admiradas e chamaram-nas de “virago”, porque se conduziam como homens, cúpidas, pérfidas, cruéis e opressoras de seus vassalos.
Entretanto, tais fatos eram excepcionais. Habitualmente a castelã passava os dias fiando, rezando, esperando o esposo e se aborrecendo. Situações como essas provavelmente aconteceram nas Cruzadas, período de longas guerras e muitas baixas.
A esse período, seguiu-se a tradição germânica na qual a mulher chegava a desempenhar um papel militar, comandava exércitos e participava dos combates. Joana d’Arc, foi uma das mulheres soldados, do exército francês, que mais se destacou. Diz-se que neste período, essa prática era bastante comum, tanto que não causava espanto às donzelas.
Supõe-se que o amor cortês que nasceu no sul mediterrânico por volta do século XII, pretendeu acarretar uma melhoria na sorte das mulheres. Não se tem certeza de que as cortes de amor tenham realmente existido. O amor cortês foi descrito, amiúde, como platônico, mas na realidade, sendo o esposo feudal um tutor e um tirano, a mulher buscava um amante fora do casamento. “O amor cortês era uma compensação à barbárie dos costumes oficiais”.86 A Antigüidade só conheceu o amor fora da sociedade oficial. Na Idade Média, o amor era platônico, cortês, ou era adúltero, dentro da instituição do casamento. E é, com efeito, essa forma que revestirá o amor enquanto a instituição do casamento perpetuar-se. Na realidade, a cortesia ameniza a sorte da mulher, mas não a modifica profundamente. Não são as ideologias, religião ou poesia que conduzem a uma libertação da mulher; é em virtude de causas muito outras que no fim da era feudal ela ganha um pouco de terreno. Quando a supremacia do poder real se impõe aos feudatários, o suserano perde boa parte de seus direitos. O direito de decidir do casamento de seus vassalos, o gozo de bens de sua pupila, as vantagens ligadas à utela desaparecem e, quando o serviço do feudo é reduzido a uma prestação em dinheiro, a própria tutela desaparece. A mulher era incapaz de assegurar o serviço militar, mas ela pôde tanto quanto o homem desobrigar-se de uma responsabilidade monetária. O feudo não passa, então, de um simples patrimônio e não há mais razão para que os dois sexos não sejam tratados em mesmo pé de igualdade. Na França admite-se, segundo a expressão de Beumanoir, que “uma mulher vale um homem”.87

Fig. 19: Miniatura do Código manessiano, século XIV, Heidelberg, Universitätsbibliothek
Fonte: ECO, Umberto. História da Beleza. Editora Record. Rio de Janeiro, 2004.

No direito consuetudinário, como no direito feudal, só não há emancipação fora do casamento, a filha e a viúva têm as mesmas capacidades que o homem, mas em se casando, a mulher cai sob a tutela do marido. Neste caso, ele pode bater em sua mulher, fiscalizar sua conduta, as relações, a correspondência, dispor de sua fortuna, não em virtude de um contrato, mas pelo próprio fato do casamento. “Logo que se realiza o casamento”, diz Beaumanoir, “os bens de um e de outro são comuns em virtude do casamento, e desde então ela está sob tutela”.88 Na verdade, o interesse do patrimônio exige tanto dos nobres como dos burgueses que um só senhor o administre. Desde o feudalismo, nota-se que a mulher casada é deliberadamente sacrificada à propriedade privada. É nas classes mais ricas que a dependência
da mulher é sempre mais concreta. Quanto mais poderoso se sente o homem, social e
economicamente, mais se vale de sua autoridade como patriarca.
O certo é que, ante a Eva pecadora, a Igreja foi levada a exaltar a Mãe do Redentor. O culto a ela ganhou tanta importância que segundo Duby, no século XIII, Deus se fizera mulher. Um olhar místico sobre a mulher desenvolveu-se no plano religioso. Por outro lado, às mulheres nobres é permitido o luxo da conversação da cortesia, da poesia e os lazeres da vida de castelã. Despontaram algumas mulheres letradas, como Beatriz de Valentinois, Alienora d’Aquitaine e sua filha Maria da França, Branca de Navarra e muitas outras, que atraem e sustentam poetas. Um amadurecimento cultural que beneficia às mulheres e lhes dá novo prestígio é observado, primeiramente no sul e em seguida no norte da Europa.
Apesar de surgirem pequenos indícios de um certo espaço concedido à mulher, sabe-se que o caminho para sua emancipação foi árduo e dependia da conjugação de vários elementos.
“A subordinação feminina permanece útil à sociedade no caso de ser casada” 89, e foi uma das barreiras mais difíceis, quase intransponíveis, para a consolidação deste processo. Por isso, enquanto a burguesia se constituía, e o regime feudal desaparecia, ainda se manteriam as mesmas regras de comportamento que deixariam as mulheres atreladas por muitos séculos a essa dependência.

79 YALOM, Marilyn. A história da esposa: da Virgem Maria a Madonna: o papel da mulher dos tempos bíblicos até hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 7080 YALOM, Marilyn, op. cit., p. 70.
81 YALOM, Marilyn, op. cit., p. 70.
82 de BEAUVOIR, Simone, op. cit., p. 130.
83 ibid., op. cit., p. 130.._
84 de BEAUVOIR, Simone, op. cit., p. 131.
85 ibid., op. cit., p. 131.
86 de BEAUVOIR, Simone, op. cit., p. 132.
87 de BEAUVOIR, Simone, op. cit., p. 132.88 de BEAUVOIR, Simone, op. cit., p.133.
89 ibid., op. cit., p. 133.

O artigo é parte integrante da tese de mestrado defendida na UNB
A Roupa, a Moda e a Mulher na Europa Ocidental Medieval
Reflexo da opressão sofrida pela mulher na Idade Média (século: XI-XV)
Orientadora: Prof.ª Drª Maria Eurydice Barros Ribeiro
Aluna: Georgia M. de Castro Santos

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