terça-feira, 21 de setembro de 2010

Encontramos Rômulo e Remo!

Arqueólogos romanos descobriram a gruta onde, segundo a lenda, os gêmeos que fundaram Roma teriam sido amamentados pela loba. Todos os anos, no dia 15 de fevereiro, acontecia uma festa no local

por Baudouin Eschapasse
Rômulo e Remo, óleo sobre tela, Pieter Paul Rubens, 1615-1616, Pinacoteca Capitolina, Roma

A lenda da loba que cuida dos gêmeos perdidos mistura história e mito na origem de Roma
O lugar se parece com uma caverna. A gruta de dimensões imponentes, 9 metros de diâmetro por 7 metros de altura, tem paredes decoradas com conchas e afrescos geométricos. No centro, uma grande pintura, uma águia branca sobre um fundo de céu azul. Descoberta em novembro passado, essa sala subterrânea que fica no coração do Germanum, a parte mais sagrada do monte Palatino, no centro de Roma, lembra os hipogeus egípcios que serviam de última residência para os nobres.

Porém, não é um monumento funerário. Ao contrário. De acordo com os arqueólogos que a encontraram – encabeçados pelo professor Giorgio Croci – é a Lupercal, a gruta mítica onde os gêmeos Rômulo e Remo teriam sido amamentados por uma loba. A localização do sítio, sob o palácio de Augusto – que se proclamava o novo Rômulo –, coincide com um local de culto mencionado por Denis de Halicarnasso, historiador grego do século I antes de Cristo. Para o arqueólogo Andrea Carandini, a identificação dessa caverna com a Lupercal mencionada pelo autor antigo não dá margem a dúvidas. A águia branca pintada sobre um fundo de céu azul é o símbolo imperial. Prova de que o imperador incorporara a seu palácio esse lugar altamente simbólico da história romana.

Voltemos à lenda. Rômulo e Remo, filhos da vestal Réia Sílvia e do deus Marte, foram colocados numa cesta e jogados no rio Tibre por um rei usurpador que esperava assim livrar-se deles. Após a cesta encalhar na margem do rio, eles foram amamentados por uma loba, e, em seguida, recolhidos e criados pelo pastor Fausto. Quando se tornaram adultos, os dois irmãos decidiram fundar uma cidade sobre o monte Palatino, no lugar onde o Tibre os havia deixado. Designado rei por sorteio, Rômulo traçou com o arado um sulco para marcar os limites da futura cidade. Adota-se geralmente 753 a.C. como o ano da fundação de Roma. Essa data é comprovada pelas descobertas arqueológicas de 2005 que permitiram desenterrar, perto do Fórum, os vestígios de um palácio datado do século VIII antes de nossa era.

MUSEU DO LOUVRE, PARIS
Mármore em homenagem ao deus Pã, a versão grega de Fauno Luperco, deus da fertilidade

FESTAS PAGÃS
O Palatino é realmente um local propício à mitologia. Nessa colina realizavam-se rituais ancestrais ligados tanto à fertilidade quanto à lenda das origens: as lupercais. Essas festas romanas muito antigas aconteciam em honra ao deus fauno Luperco, divindade pastoral, com o intuito de assegurar a fertilidade dos campos e dos rebanhos. As cerimônias ocorriam no dia 15 de fevereiro de cada ano e coincidiam com a primavera, que começava no dia 5 de fevereiro. Elas são associadas a um ritual de expiação de todas as ofensas aos deuses cometidas pelos homens. Daí vem a etimologia do mês de fevereiro, em latim februarius, que vem de Februa, a festa da purificação. Nessa data, fazia-se uma grande limpeza nas casas e, em seguida, espalhavam-se sal e trigo pelos cômodos.

Os 12 lupercos, os “sacerdotes-lobo”, reuniam-se na Lupercal, a famosa gruta, onde sacrificavam bodes e um cachorro. Durante a cerimônia, lambuzavam de sangue dois jovens oriundos das mais antigas famílias aristocráticas de Roma, apresentados como descendentes diretos dos fundadores da Cidade Eterna – os Fabianos e os Quintiliares, aos quais Júlio César acrescentaria os Julianos. Esses jovens eram conduzidos até o altar de sacrifícios e suas testas ungidas com o sangue dos animais executados. A marca era imediatamente apagada por um chumaço de lã embebido em leite. Os jovens deviam então dar uma gargalhada ritual.

Em seguida os lupercos lançavam-se numa perseguição através das ruas da velha Roma quadrata, a cidade fortificada construída pelo próprio Rômulo. Após terem dado a volta ao monte Palatino, rindo e derramando vinho para purificar o sítio, eles percorriam a cidade, cobertos por peles de animais, chicoteando a população com tiras das peles dos animais mortos naquela manhã. Uma crença popular rezava que esses açoites traziam a fertilidade e favoreciam a descida do leite das mães, de maneira semelhante à flagelação com um ramo de murta durante a festa da Lucaria, em julho. Na esperança de livrar-se das dores do parto, as mulheres grávidas ofereciam-se espontaneamente ao chicote.
© WENDY FARRINGTON / SHUTTERSTOCK

Foto atual das ruínas do Germanum, no monte Palatino, onde foi encontrada a gruta
Como acontecia freqüentemente entre os romanos, esse dia de festa terminava com ágapes, grandes banquetes durante os quais os convidados praticavam jogos de azar. Em especial, uma loteria do amor, sob o signo de Juno, deusa do casamento. As jovens escreviam o nome em fichas que depositavam em uma grande urna, de onde os homens solteiros sorteavam aquela com a qual partilhariam a noite. Dizem que não era raro que os casais assim formados terminassem por se unir perante os deuses. Alguns acreditam que, com a Liberalia, que acontecia por volta de 15 de março, as lupercais faziam parte de um ciclo de rituais iniciáticos que marcavam o fim da infância para os romanos. Outros vêem nos extravasamentos sensuais que acompanhavam os banquetes uma explicação da ambigüidade etimológica que preside à lenda de Rômulo e Remo: a lupa não significa somente loba, mas também prostituta, como o atesta o termo “lupanar” (prostíbulo).

Tais práticas concorreriam mais tarde, a partir de 495, com duas festas católicas instituídas por iniciativa do papa Gelásio I: a da purificação da Virgem no dia 2 de fevereiro e a de são Valentim, no dia 14 de fevereiro. As lupercais seriam definitivamente proibidas em 518, por ordem do imperador bizantino Anastácio.

A descoberta, em novembro de 2007, da lendária gruta de Rômulo e Remo nos faz mergulhar na história fantástica da origem da mais importante cidade da Antigüidade. E, por inacreditável que pareça, ao menos o sítio lendário tornou-se realidade.
CRONOLOGIA

HO NEW / REUTERS
Foto do interior da gruta. O espaço foi alterado durante o reinado do imperador Augusto para celebrar os Lupercais

753 A.C.
Ano estimado de fundação de Roma

Século I A.C.
Início das festividades dos Lupercais em Roma

495
O papa Gelásio I cria duas festas católicas para concorrer com o Lupercal

518
A celebração dos Lupercais é proibida pelo Imperador bizantino Anastácio

2007
Encontrada, em 20 de novembro, a caverna onde Rômulo e Remo teriam sido amamentados pela loba
A FRONTEIRA ENTRE MITO E HISTÓRIA NÃO VALE MAIS
Esclarecimentos de Alexandre Grandazzi, professor de literatura latina em Paris IV – Sorbonne e especialista em Roma.

Baudoin Eschapasse – Há anos que os arqueólogos procuram Lupercal, a gruta onde a loba teria amamentado Rômulo e Remo. Por que lhe dão tanta importância?
Alexandre Grandazzi – Porque, talvez, ela transporte diante de um local de culto maior, que tinha um grande valor simbólico de comunidade e identidade. Porém devemos ser prudentes: por enquanto ninguém entrou nesta cavidade que ainda está quase cheia de terra [a exploração foi feita com uma câmera]. Mesmo se os textos antigos indicam que a Lupercal se localizava realmente na zona onde foi encontrada.

B. E. – Essa descoberta confirma a lenda da fundação de Roma?
A. G. – Por mais excepcional que seja, essa descoberta não é suficiente para provar a veracidade da lenda da fundação de Roma. Mas, se for comprovada, ela mostraria que a lenda romana apoiava-se em uma série de tradições e locais de culto, alguns dos quais poderiam ser muito antigos, pelomenos da idade do bronze: nesse caso, estamos lidando com o fenômeno bem conhecido das grutas cultuais, e muitos exemplos mostram em locais desse tipo uma freqüentação e práticas religiosas que vão desde a Pré-história até a Idade Moderna. Os textos dizem que a gruta havia sido reformada por Augusto e as imagens transmitidas pelos arqueólogos italianos mostram uma decoração que parece datar do início do império.

B. E. – Isso contribui para que a linha que separa mito e história não fique mais tão nítida?
A. G. – O que fica claro com essa descoberta, é que a linha de separação traçada pelos cientistas do século XIX, teoricamente intransponível, entre mito e história, entre verdadeiro e falso, não vale mais. Na realidade, a presença do mito não prova a ausência da história. Pelo contrário! Existe um mito sobre Napoleão, o que não implica que o imperador não tenha existido... Acontece o mesmo com Rômulo: o nascimento da cidade romana, no meio do século VIII antes da nossa era, foi um acontecimento de tão grande alcance histórico que, para guardá-lo na memória e celebrá-lo, os romanos contaram-no sob forma de mito, dando o melhor papel aos deuses e ao maravilhoso, e transformando-o assim em ritos de identidade coletiva. Se quisermos compreender o significado dessas lendas antigas, precisamos rever nossos preconceitos científicos herdados do século XIX.
Baudouin Eschapasse é jornalista e colaborador da revista Historia

Revista História Viva

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