domingo, 19 de setembro de 2010

Mito e verdade: os deuses gregos em Walter Otto


Mito e verdade: os deuses gregos em Walter Otto

Autor buscou a verdade dos mitos gregos além dos textos e imagens em que aparece

Qual é o estatuto dos mitos gregos em nosso mundo? O que chamamos de “mitologia grega” tem para nós o mesmo significado que qualquer outra? Impossível colocar essas questões sem entrar na arena de um grande debate. Os próprios conceitos de “mitologia” e “mito” suscitam, hoje, séria discussão; questiona-se a invenção algo caprichosa de um objeto de contornos pouco claros, inspirado em uma espécie de fantasma da erudição clássica: um produto tardio de compiladores no crepúsculo do helenismo.
Claro, pode-se pensar no amplo conjunto (inabarcável, de duvidosa unidade) que motivou as compilações, na floração das narrativas por elas visadas, e dar-lhe o mesmo nome que às coletâneas: mitologia. Assim se fez. E assim se construiu um paradigma que historiadores e etnólogos passaram a aplicar universalmente, sem muito inquietar-se com a singularidade de sua origem. Mas hoje não poucos se perguntam se o emprego transcultural da noção de mito não seria abusivo. E não falta quem recorde a precária correspondência entre o significado hodiernamente atribuído a este nome e os diversos sentidos que davam os gregos a seu étimo. Todavia, mesmo os estudiosos tomados desse escrúpulo mal conseguem dispensar o emprego dos termos criticados.
A prova empírica da prática continuada parece dar razão a seus opositores. Volto, pois, à questão inicial: para nós, será a mitologia grega como qualquer outra? Aos olhos do mais famoso mitólogo contemporâneo ela é singular, cenário de um espantoso salto da razão mítica rumo ao conceito, acontecido só na Grécia. Resulta curioso que esta mitologia única, diferente de todas as demais, tenha fornecido o paradigma para a construção teórica do objeto “mitologia”, permitindo assim categorizar todas as demais.
Na verdade, Lévi-Strauss é fiel à tradição que constituiu esse paradigma. Basta para mostrá-lo recordar sua célebre afirmativa de que “um mito é percebido como mito por qualquer leitor no mundo inteiro”. Frisei a palavra sintomática: ela aponta para textos oriundos de tradição oral recolhidos e tornados em escritos por compiladores. Para o pesquisador, mitos são dados da operação “mitográfica”. Este recorte levou longe a bem-sucedida análise estrutural. Será possível outra maneira de pensar no assunto?
Falarei agora de um autor que buscou a verdade dos mitos gregos mais além dos textos e imagens em que eles aparecem: focalizando sua relação originária com o culto e tentando chegar à origem comum de ambas realidades (a narrativa mítica e a prática ritual). Os próceres das escolas de pensamento que em sua época dominavam os estudos clássicos reagiram com escândalo. Um deles, Martin Nilsson, declarou que não podia considerar científica a obra de Walter Otto; nela via um discurso religioso, coisa “de profeta”. Para este, os deuses gregos ainda vivem em nosso mundo. Walter Otto reconheceu que as histórias sagradas dos gregos perderam a autoridade de um consenso fiel. Mas também constatou que a ruptura do compromisso com a crença e o culto não bastou para as proscrever; não afastou efetivamente da consciência ocidental as figuras divinas da chamada Antigüidade Clássica. Na Poesia, na Arte, na Filosofia, elas continuam a iluminar-nos: segundo ele argumentava, nós ainda as evocamos “quando queremos falar em tom elevado do mundo e da existência”.
Eis o alvo da sua reflexão: reacender na consciência a aparição fascinante do divino que despontou no mundo helênico. Para Otto, os deuses da Hélade ainda nos falam — desde uma profundeza que teimamos em ignorar, quando nos cingimos à superfície de nossa própria cultura. Nós os olvidamos, mas eles retornam sempre, graças ao brilho verídico de sua essência… Seriam testemunho disso as iluminações de modernos homens de gênio como Goethe, Winckelmann, Schelling, Hölderlin, que falaram deles com fervor…
Otto buscou reviver a teofania original, contemplar a criativa teoria dos deuses gregos. Quis abrir-se ao divino, que para ele só pode ser vivenciado: dádiva gratuita e impossível de forçar, pois as musas só se aproximam de homens musicais, segundo ele dá a entender em seu pequeno mas admirável livro intitulado Teofania. Entende-se que este filólogo profundamente erudito tenha, afinal, optado por um método que merece ser chamado de poético. É fácil identificar seu guia máximo na reflexão sobre os deuses gregos: embora reconhecesse que o culto de Apolo, Ártemis, Hermes, Atena, Afrodite etc. pré-existiu ao mundo helênico, ele destacou a “nova revelação” dos deuses na obra de Homero. Seu famoso livro Os deuses da Grécia concentra o foco na religião homérica; mas a partir daí ele consegue derramar luz sobre todo o universo da cultura grega (que Homero iluminou) e assinalar por contraste quanto ficou “de fora”, aquém e além… Assim, ele já abria espaço nessa obra para uma outra que pouco depois escreveu, dominada pela dança fascinante de Dioniso. Seu enfoque apaixonado, fervoroso, do mundo dionisíaco provocou espanto. Era consenso na época que Dioniso seria um deus tardiamente chegado ao mundo grego; Otto sustentou que ele era uma divindade antiga na Hélade.
Pouco depois de sua morte, uma grande descoberta arqueológica lhe daria razão, contra Nilsson e outros helenistas que o achavam delirante… Otto também antecipou Lévi-Strauss na resoluta valorização de uma obra singular de Schelling, a Philosophie dermythologie — e particularmente na adoção de um princípio hermenêutico que este filósofo aí preconizou, recomendando, em vez da costumeira -exegese alegórica, adotar uma interpretação “tautegórica” dos mitos, que pelos próprios mitos devem ser explicados. Foi entusiasta de Nietzsche quando entre os helenistas ainda se hesitava em acatar a inspiração do filósofo praticamente proscrito da Filologia clássica em conseqüência do ataque de Willamowitz Moellendorf, o princeps philologorum. Walter Otto teve, sim, muito de vate; foi muitas vezes “acusado” de profeta e poeta. Sua obra continua a brilhar à luz de uma amorosa contemplação dos deuses da Grécia.
Ordep José Serra
é bacharel em Letras e mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UNB). Professor adjunto do departamento de Filosofia, Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Traduziu, entre outros, os livros Os deuses da Grécia e Teofania, ambos de Walter Otto, todos pela Odysseus Editora, de São Paulo

Revista CULT

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