sábado, 18 de setembro de 2010

Mitos nas estrelas


Mitos nas estrelas
Por Carlos Eduardo Lins da Silva, em Washington, e Lúcia Helena de Oliveira


Não foi há muito, muito tempo, numa galáxia distante. Foi há apenas trinta anos, na Universidade Southern California. E a história, aqui, gira em torno de um aluno de cinema. O americano George Lucas, então com 23 anos, começou a ler a obra de Joseph Campbell, uma das maiores autoridades deste século em mitologia. E, para fazer um trabalho acadêmico, juntou um pouco de tudo o que aprendeu em uma única história. É isso o que revelará, a partir da segunda quinzena de ou-tubro, a exposição "Guerra nas Estrelas, a mágica do mito", no Museu do Ar e do Espaço, em Washington, nos Estados Unidos.
Saturno, o deus romano, devora seus filhos com terrível voracidade e, depois, se arrepende. "Ele inspirou Darth Vader", diz Mary Henderson, curadora da exposição nos Estados Unidos. No filme, o personagem cujo nome vem de "dark father", ou "pai escuro", também vai tentar destruir o filho e se redimir no duelo final. Na realidade, o diretor e roteirista George Lucas aproveitou elementos de outros mitos religiosos na figura do mascarado.

Das diversas religiões do planeta veio a idéia da Força, o campo de energia das coisas vivas. Os mitos universais têm uma moral: essa energia só é bem explorada quando cada um desenvolve a sua individualidade. "Na história, Vader passou para o Lado Escuro da Força porque servia o sistema sem questioná-lo", analisa Mary Henderson. "O sistema pode ser o governo ou a sociedade. Como ele não tem personalidade própria, usa uma máscara."
Aquiles, na mitologia grega, é o descendente direto de Zeus e, em uma das versões da sua história, era um sujeito relativamente normal, que não se destacava de um modo excepcional. Foi então que, um dia, ele começou a ser treinado para a vida heróica por um centauro (meio homem, meio cavalo). Quíron, o centauro, lhe implanta um osso de gigante, capaz de dar a Aquiles uma incrível velocidade, sua arma para vencer diversos perigos.

"Skywalker (interpretado por Mark Hamill) é uma versão do jovem grego", compara a pesquisadora americana Hanna Hoisman, autora de livros sobre os mitos da Grécia Antiga. "Ele é o típico jovem comum, bem simples. Um dia, porém, sua ascendência nobre é revelada. Então, é treinado por figuras que estão fora da esfera humana como se fossem adaptações do centauro Quíron. Só que de presente, para vencer sua luta, Luke ganha uma espada."
Ulisses, outro famoso mito grego, não alimentava grandes pretensões de ser o bonzinho. Aliás, era bem o contrário: ele sempre foi capaz de qualquer coisa para conseguir o que desejava. Assim, não hesitou em matar todos os pretendentes de sua mulher, Penélope. E ainda se fingiu de louco para não ter de ir à Guerra de Tróia. Mas sua farsa foi descoberta e ele acabou obrigado a ir para o campo de batalha. Realizou tantas peripécias vitoriosas que acabou como herói.

O mercenário do filme, que lançou Harrison Ford ao estrelato, foi baseado em Ulisses. "Ele é capaz dos maiores heroísmos e, ao mesmo tempo, das mais baixas formas de esperteza", diz a mitóloga Hanna Hoisman. "A exemplo do mito, Solo se recusa a guerrear. Seu cálculo é simples: não teria nada a ganhar com isso. Mas, no final, acaba lutando — e com todo empenho." Para completar, o personagem também tem a sua Penélope.
Penélope, a mulher de Ulisses, esperou o marido durante vinte anos enquanto ele foi lutar na Guerra de Tróia. Passado tanto tempo, diziam que Ulisses não voltaria mais. Novos pretendentes começaram a cortejá-la. Esperta, para ganhar tempo, disse que escolheria um deles assim que terminasse de tecer a mortalha do sogro. Mas, toda noite, ela desmanchava os pontos do tecido, de modo que o trabalho nunca acabava.

Para os estudiosos, Léia é o personagem mais moderno da trilogia de George Lucas. "Há poucas mulheres fortes na mitologia clássica. Na verdade, Penélope, que é cheia de idéias próprias, dona de uma personalidade marcante, talvez seja uma das raras exceções", diz Mary Henderson. Um detalhe que chama a sua atenção: "Nos 24 livros da Odisséia, Penélope é a única pessoa que consegue tirar Ulisses do sério, como Léia faz com Hans Solo".
Ben Kenobi, o personagem de Alec Guiness, representa o sábio. "Em quase todos os mitos o sábio é um estranho, que aparece de repente com seus ensinamentos. Sem ele, o herói nunca iria longe", explica Carl Rubino, professor do Hamilton College, de Nova York. George Lucas contou à SUPER que, mais especificamente, Kenobi foi inspirado nos mestres dos samurais, que surgem nos mitos japoneses a partir do século XII. "Eles passavam a noção de que, para a vitória, a mente precisava ser tão bem treinada quanto o físico."
"Os robôs C3-PO e R2-D2 são personagens cômicos comuns em quase todas as lendas", conta Hanna Roisman. Segundo ela, eles servem para dar um pouco de leveza às histórias repletas de questões filosóficas. Na tragédia grega, quem faz esse papel são os bufões carecas. Já no teatro romano, aparecem figuras engraçadas de chapéu pontudo nas cenas mais dramáticas. "Talvez a melhor personificação desse lado cômico seja o bobo da corte, surgido ainda no tempo dos faraós no Egito."
Só nos primeiros trinta dias depois de ser relançada, em abril passado, numa nova versão, a trilogia de George Lucas já rendeu 117 milhões de dólares. Isso, claro, sem contar os 323 milhões que ele já tinha faturado com os três filmes até então. "As três histórias são uma das melhores sínteses dos mais importantes mitos da nossa civilização", diz Mary Henderson. "Por isso fez tanto sucesso há vinte anos e continuará fazendo daqui a outros vinte." Joseph Campbell, morto há uma década, aos 83 anos, provavelmente concordaria.
O mitólogo americano, que realizou suas pesquisas no Museu de História Natural de Nova York, costumava falar que a narrativa mítica tinha a função de despertar em cada um o sentido da sua própria aventura. "Os mitos falam lá no fundo, no nosso inconsciente", dizia. "Por isso, sempre conquistam o ouvinte."
O pesquisador só viu a trilogia do cinema depois de pronta. E aprovou: "Aceitei o convite de Lucas e fui ao seu sítio na Califórnia para assistir aos filmes. É um magnífico trabalho."
Para saber mais

O Poder do Mito, Joseph Campbell com Bill Moyers, organizado por Betty Sue Flowers, editado pela Associação Palas Athena, São Paulo, 1996

Revista Superinteressante

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