sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

“Aproximação por afastamento”: releituras de Colonização e catequese


Guilherme Amaral Luz
Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor do livro Carne humana: canibalismo e retórica jesuítica na América portuguesa (1549-1587). Uberlândia: Edufu, 2006. guilherme_a_luz@yahoo.com.br

“Aproximação por afastamento”: releituras de Colonização e catequese, de José Maria de Paiva


PAIVA, José Maria de. Colonização e catequese. São Paulo: Arké, 2006, 160 p.


Em princípios da década de 1990, quando comecei a me interessar pelos “assuntos jesuíticos”, ao menos cinco autores eram referências obrigatórias em qualquer balanço historiográfico sobre a área: Serafim Leite1, Luís Felipe Baeta Neves2, José Carlos Sebe Bom-Meihy3, Arno Alvarez Kern4 e José Maria de Paiva5. O primeiro, com freqüência, localizava-se no início do balanço, os outros quatro, no fim. Leite representava um paradigma positivista e conservador em relação ao tema, do qual convinha manter certo distanciamento ideológico deliberado. Os demais, para o bem ou para mal, representavam uma espécie genérica (e equivocada, pois todos estavam e ainda estão na mais profícua produção intelectual) de “autores do final da década de 1970 e início da década de 1980”, movidos supostamente por uma perspectiva economicista ou, quando não, pouco sensível às dimensões cultural e teológico-política que então se anunciavam no horizonte da maior parte dos projetos e pesquisas de minha geração. Mas, se por um lado, a pretensão pueril era “superar” os mestres, por outro, havia certamente, entre os aspirantes a pesquisadores daquela época, uma reverência saudável às obras desses autores, tidas como pioneiras dos estudos verdadeiramente acadêmicos sobre os primeiros missionários jesuítas do Brasil.
Quase vinte e cinco anos após a primeira edição de Colonização e catequese, de José Maria de Paiva, este, que é um dos clássicos da historiografia brasileira sobre os jesuítas no período colonial, faz-se reeditar. Mais do que isso, reedita-se acrescido de 54 páginas inéditas (50% a mais em relação ao texto original), escritas pelo autor, o que, no mínimo, é um convite sedutor para a edificação de releituras. Releitura, por sinal, é um conceito que se afina perfeitamente à concepção histórica de Paiva, cuja abordagem, diria ele lá em fins da década de 1970, é uma “aproximação por afastamento: é como outro que trazemos até nós do passado e fazêmo-lo, conosco; presente”6. A edição de 2006 é um documento do passado trazido até nós por seu autor que, como um “outro”, o faz e a si mesmo (na distância) presente. Assim, a reedição, aqui, não é nostálgica, posto que não ressentida; nem celebrativa, porque não afetada. É memória, sim, mas memória reposta, que, no sentido que entende Paiva, é o mesmo que revivida, reexperimentada e, sobretudo, ressignificada.
Com o livro em mãos, senti-me convidado à releitura. E não me contentei em ler apenas os comentários atuais do autor sobre o seu antigo trabalho. De fato iniciei a leitura do livro pelo prefácio, datadíssimo, de Casemiro dos Reis Filho. É impressionante a força dos prefácios na cristalização de determinadas leituras sobre certas obras. No caso de Colonização e catequese, a memória que eu tinha da primeira leitura condizia mais com o conteúdo das duas páginas da apresentação do que com as cerca de 100 outras que compõem o trabalho. Relendo o texto, antes mesmo de passar em revista os novos comentários do autor, percebi que a correção que demandava era mais na leitura que dele se cristalizou e, logo, dos sentidos que a ele foram atribuídos, do que no conteúdo original. Este, ao contrário, permitiu-me verificar sutilezas de construção, formas complexas de pensamento e insights primorosos dos quais novos trabalhos sobre os jesuítas, deliberadamente ou não, são profundos devedores.
Primeiramente, gostaria de ressaltar, como um dos elementos mais sofisticados da obra, a conjunção complexa de duas gramáticas sistêmicas:
a do orbs christianus e a do antigo sistema colonial7. Na leitura de Paiva, uma não se entende sem a outra. O orbs christianus, nesse caso, seria a própria visão de mundo quinhentista que submete tudo à sua causa primeira, Deus, a verdade da História para a qual todas as ações humanas deveriam tender. O Antigo Sistema Colonial, por sua vez, é a forma de realização política, social e econômica concreta de o português fazer viger, conforme sua missão providencialmente inspirada, a verdade do orbs christianus. Nesse sentido, afirmaria Paiva, a prática mercantil e os propósitos dos seus agentes não podem ser colocados em oposição aos interesses religiosos e catequéticos da colonização. Ao contrário, ambas, colonização e catequese, são formas de realização dos objetivos sagrados do orbs christianus.
Mas Paiva não pára o argumento aí. Ao contrário, esse é apenas o início da defesa de uma tese que, se não suscitou mais polêmica, foi por ter sido lida de forma simplificada tanto por aqueles que a valorizaram quanto pelos que a recusaram, qual seja, a tese da predominância dos interesses mercantis sobre os religiosos e catequéticos na colonização. O equívoco mais freqüente na leitura dessa formulação de Paiva advém da falta de percepção de que os interesses mercantis, para o autor, determinavam a forma do domínio colonial e não as suas finalidades. Nesse sentido, destaca-se o argumento de que a busca pelo estabelecimento de caminhos justos de sujeição do índio (com a conseqüente denúncia de injustiças) e a suavização do cativeiro demonstra que os jesuítas reconheciam, na escravização dos indígenas, uma prática inevitável e, mais do que isso, necessária para a realização do projeto colonial e catequético.
Isso posto, é possível ler o texto de Paiva, escrito vinte e cinco anos depois, sem considerar que ele se volta a correções, ou melhor, se há correções, como eu disse antes, são relativas aos significados atribuídos ao texto em diversos momentos e não tanto ao seu conteúdo original. O que a releitura do autor traz é outro procedimento: a (auto)crítica. Nela saliento, inicialmente, a reafirmação do lugar por excelência que o autor reivindica para o seu livro: o lugar da cultura. Aqui há mais equívocos a serem evitados. Primeiro, a abordagem cultural que se propõe nada tem de contraditório em relação ao suposto economicismo ou marxismo associados ao texto original nas diversas leituras que recebeu. Antes, Paiva define cultura como o lugar da experiência vivida do ser, que é sempre, e ao mesmo tempo, religioso, político, econômico... Cultura, para o autor é o espaço de decodificação histórica da experiência particular da totalidade
e da unidade. Nesse sentido, religião e economia são partes da cultura e se compatibilizam nela. No caso de Colonização e catequese, catequese e mercancia, por exemplo, harmonizam-se na finalidade do orbs christianus.
Na experiência do português colono ou do missionário jesuíta, não há lugar para separá-las, apenas para articulá-las, com seus devidos pesos, na realização política da ordem cósmica arquitetada por Deus.
É interessante notar que a “cultura-totalidade” de José Maria de Paiva se caracteriza, no caso da expansão portuguesa, como teologia política. Assim, é no interior de uma cultura político-teológica que ele busca reler e reinterpretar noções caras ao seu livro, como as de sujeição e doutrinação do índio, o que passa por definir historicamente os possíveis significados de liberdade no interior da racionalidade da época. Com efeito, a partir de reflexões, sobretudo de E. Kantorowicz8, João Adolfo Hansen9 e A. M. Hespanha10 sobre a cultura política do Antigo Regime português, o autor percebe que a melhor definição quinhentista para liberdade talvez seja o de uma “livre-sujeição”, isto é, o reconhecimento, por parte do sujeito histórico, “de sua posição dentro da ordem, a única ordem, a ordem que Deus mesmo dispôs”11. Isso quer dizer que sujeitar é, nessa cultura política, preservar a sociedade ordenada conforme sua “natural criação”. Entende-se que a exploração do índio ou sua incorporação como subalterno na hierarquia do “corpo místico” do reino e da Igreja atende, ao mesmo tempo, uma ambição mercantil e uma perspectiva teológica destinada ao ordenamento político da sociedade. Fora dessa “ordem”, aos olhos do cristão católico quinhentista, jesuíta ou não, não haveria, para o índio, a possibilidade da salvação.
Para concluir esta resenha, cabe considerar a ressonância das idéias de Colonização e catequese na atual historiografia sobre a Companhia de Jesus na América portuguesa. Julgo interessante, neste momento, transcrever o seguinte argumento de Paiva:
Dois temas se põem ainda como necessários para uma releitura crítica do século XVI colonial. O primeiro, a que já me referi ao mencionar a predominância dos interesses mercantis, diz respeito precisamente à compreensão cultural que de modo geral a Europa e de modo particular Portugal tinham de mercancia. A catequese, a pregação, a doutrina, os padres, as ordens religiosas, nada disso se entende se, de princípio, forem postos em contraposição com o mercantil. O segundo tema diz respeito mais proximamente aos jesuítas ou, na feliz expressão de J. C. Sebe Bom-Meihy, à presença do Brasil na Companhia de Jesus, pensando as transformações que eles estariam vivendo no contexto de colônia.12
O trecho acima — não sendo em nada contraditório às reflexões de José Maria de Paiva e de José Carlos Sebe Bom-Meihy realizadas há quase trinta anos — lembra-me muito vividamente dois dos principais trabalhos recentes sobre os jesuítas: Negócios jesuíticos, de Paulo de Assunção, e As missões jesuíticas e o pensamento político moderno, de José Eisenberg. O primeiro foi responsável por demonstrar a profunda indissociabilidade entre racionalidade mercantil e perspectiva teológica na própria forma de os padres jesuítas gerirem seus bens temporais13. O segundo demonstra como a experiência da missão na América portuguesa foi central para a transformação do pensamento político da Companhia de Jesus no século XVI, fato com profundo impacto no contratualismo e nas teorias do consentimento político por temor no século seguinte.14
Nesse último sentido, Paiva revela novamente a complexidade de seu pensamento ao afirmar que, “embora os jesuítas fossem os defensores da liberdade dos índios, no sentido de exigirem dos demais colonos a legitimidade da sujeição, também eles reconheciam a indissociabilidade entre doutrinação e sujeição no contexto colonial”15.
Invertendo a ordem da frase, mas sem inverter seu sentido, isso quer dizer que os jesuítas buscaram conciliar a via da sujeição e da força, como estratégia missionária, com a exigência da justiça no trato com o “gentio”. A sutileza, aqui, é formidável, indicando que a “defesa jesuítica do índio” é, igualmente, a defesa de sua sujeição regulada, afinada com a justiça e com a vontade de Deus e, logo, preparada providencialmente.
Mais uma vez, vemos aqui que o pequenino livro de 1982 ainda tem muitíssimo a oferecer, notadamente quando relido à luz de nossas novas preocupações do presente.


1 Refiro-me principalmente à sua monumental história dos jesuítas no Brasil: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil (10 volumes). Rio de Janeiro: INL, 1949.
2 NEVES, Luís Filipe. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1971.
3 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Presença do Brasil na Companhia de Jesus (1549 - 1649).
Tese (Doutorado em História) – FFLCH-USP, 1976.
4 KERN, Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
5 PAIVA, José Maria de. Colonização e catequese: 1549 – 1600. São Paulo: Cortez Editores, 1982.
6 PAIVA, José Maria de. Colonização e catequese. São Paulo: Arké, 2006, p. 15.
7 Os conceitos de orbs christianus e de antigo sistema colonial, José Maria de Paiva aproveitou, respectivamente, das leituras de Joseph Hoeffner (La ética colonial española del siglo de oro. Madrid: Cultura Hispânica, 1957) e de Fernando Novais (Estrutura e dinâmica do antigo sistema
colonial. Cadernos do Cebrap, São Paulo, n. 17, 1975), cujas obras aparecem referidas na bibliografia das edições de 1982 e na atual de Colonização e catequese.
8 KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre a teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
9 Principalmente: HANSEN, João Adolfo. Ler e ver: pressupostos da representação colonial. Anais do VI Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. Disponível em Acesso em 24 set. 2007.
10 HESPANHA, Antônio Manuel. Introdução. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal. Tomo IV: O Antigo Regime, 1620-1807. Lisboa: Estampa, 1992, p. 09-15.
11 PAIVA, José Maria de. Colonização e catequese, 2006, op. cit., p. 117.
12 Idem, ibidem, p. 141.
13 ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos, São Paulo: Edusp, 2004.
14 EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.
15 PAIVA, José Maria de. Colonização e catequese, op. cit., 2006, p. 150.

Revista ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 237-238 241, jan.-jun. 2008

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