quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Desconstruindo as estruturas da comunicação

Para os cientistas da comunicação, a "globalização" e a "era da informação" não podem ser chamadas de conceitos, por não serem oriundas de estudos científicos
por Michel Nuñez fotos Mo March

Confesso que, antes de chegar ao Memorial da América Latina para esta entrevista, muitas coisas me passaram pela cabeça. Dentre elas, qual seria a dinâmica e a linguagem que utilizaria numa conversa com um "cientista da comunicação". No entanto, ao encontrar Jorge González me deparei com um sujeito alegre, vestido com calça de sarja cheia de bolsos e uma camisa de botão. Logo de cara, percebi que estava diante de um cientista moderno, muito diferente dos que costumo ver pela televisão: sérios, com cabelos brancos, trajando terno e gravata e um avental branco por cima da roupa. Porém, um detalhe me chamou muito a atenção: seus óculos, que além de redondos, como os de John Lennon, tinham lentes alaranjadas. Talvez isso fosse um presságio do que viria logo adiante.

Nesta entrevista, realizada durante o II Colóquio Brasil-México de Ciências da Comunicação, evento promovido pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Jorge González fala sobre os avanços da Ciência da Comunicação, a contribuição que essa modalidade de ciência pode trazer para a sociedade e sobre os estudos que vêm sendo realizados por cientistas brasileiros e mexicanos no segmento. Desde 2004, Gonzalez coordena o Programa de Epistemologia da Ciência e Cibercultura e o Centro de Investigações Interdisciplinares de Ciências e Humanidades, da Universidade Nacional Autônoma do México.

Confira os principais trechos da entrevista e entenda por que os conceitos que adoramos usar quando discutimos assuntos relacionados à internet e à Era da Informação se transformaram em "sem-ceitos". Pelo menos na visão do cientista.

A Ciência da Comunicação surgiu na década de 1970. O que ela trouxe de novo e qual a contribuição dela para o desenvolvimento de uma sociedade?

González Depois de décadas de estudo, chegamos à conclusão de que é possível estudar, de forma integrada, a relação comunicação- informação-conhecimento, como ponto-chave da inteligibilidade de todo o vínculo social. Com trabalho científico podemos começar a entender como se compõe, como se transforma, como se desestrutura e volta a se estruturar uma sociedade. Ao contrário do que muitos pensam, nosso foco não está na produção ou no poder dos meios de comunicação, mas, sim, na importância da relação comunicação-informação- conhecimento para a composição e o desenvolvimento de uma sociedade.

" É possível estudar a relação entre comunicação, informação e conhecimento como ponto-chave da inteligibilidade do vínculo social "

Muitas pessoas colocam esse trabalho como um meio de estudar a cultura de um povo. Isso procede?

González Na verdade, o conceito "cultura" ficou pequeno em comparação ao universo de estudos no qual estamos inseridos. A cultura por si só é uma mescla de várias culturas. Não existe cultura "pura", pois ela se recompõe sistematicamente com o passar do tempo. Hoje, estamos trabalhando um conceito chamado de "ecologia simbólica", que nos permite estudar a relação comunicação-informação-conhecimento sob o ponto de vista de produção, organização e geração de estruturas e instituições sociais. Na verdade, estamos envolvidos em estudos que dificilmente são tomados por sociólogos e antropólogos, como a memética, por exemplo. Enfim, estamos tocando em estruturas autorreferenciais que vão se transformando ao longo do tempo.

Qual o maior desafio enfrentado pelos profissionais da área?

González O maior desafio está em conseguir desvincular a Ciência da Comunicação dos meios de comunicação. Trata-se de um assunto complexo, pois nosso trabalho está focado em estudar a importância desse tripé (comunicação-informação-conhecimento) na criação, no desenvolvimento e evolução de todo e qualquer tipo de sociedade, desde a mais primitiva até a mais contemporânea. Como nossa profissão é bastante nova, precisamos, antes de tudo, construir uma base sólida que nos permita, no futuro, enxergar novos horizontes.

"Tecnologia da informação é um conceito vago. O termo correto é ´tecnologia do conhecimento´, pois por meio da tecnologia acessamos as informações"

O que chama de base sólida?

González Não há como fazer ciência sem teorias, metodologias e fontes de estudo. O que estamos tentando fazer há 30 anos é construir uma estrutura forte para, assim, realizar estudos mais claros e objetivos. Hoje, por exemplo, vemos muitas teorias de comunicação baseadas em descrições. Além de torná-las pouco compreensíveis, torna difícil criarmos estruturas de estudo, ou seja, as metodologias. Se quisermos realmente que a profissão deslanche, precisamos trabalhar com transparência e bastante objetividade, para que todos, até os mais leigos, conheçam o objeto estudado e entendam o porquê do trabalho.

Você costuma comentar em suas palestras sobre a importância de se diferenciar o objeto de estudo em vez de apenas descrevê-lo. O que isso representa de maneira prática?

González Hoje, o mundo está repleto de conceitos que, no meu modo de ver, são "sem-ceitos". Ou seja, não podem ser chamados de conceitos exatamente por não serem oriundos de estudos científicos. Dentre eles está a tal da "globalização", a "cultura de massa", a "era da informação" e assim por diante. Geralmente, quem rotula isso são os jornalistas, que se sentem na obrigação de criar algo novo.

O problema é que esses "sem-ceitos", ao serem jogados na mídia, ganham força e se tornam palavras "sexys". E como o consumidor de informação adora tudo o que é sexy, atrativo, acaba incorporando os termos ao seu discurso sem saber ao certo o que isso representa. Por outro lado, a ciência trabalha anos e anos pesquisando um objeto. Porém, esses estudos só têm validade quando os cientistas conseguem diferenciar o objeto estudado dos demais já existentes. Eu sempre uso a água como exemplo. Para a grande maioria, não importa qual a composição da água. Na verdade, poucos sabem que ao beber água estão bebendo uma porção de H2O, que é composto por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.

Essas mesmas pessoas não têm o mínimo interesse em saber o porquê de cada nomenclatura. Porém, é conhecendo cada composição que conseguimos diferenciar o H2O do H2O2, que é um peróxido de hidrogênio, mais conhecido como água oxigenada. Esse desconhecimento, no entanto, pode levar a uma lesão extremamente grave, pois ao beber um gole de H2O2, que é um líquido altamente oxidante, a pessoa pode simplesmente destruir a garganta. Por isso, a importância de se diferenciar os objetos de estudo. Se nós, cientistas da comunicação, realizarmos estudos claros e objetivos ao ponto de conseguirmos diferenciar um estudo do outro, automaticamente construiremos categorias de estudos. Só assim daremos nossa contribuição à sociedade como um todo.

Sendo a Era da Informação um "sem-ceito", existe algum conceito que defina melhor esta atual época?

González Antes de qualquer coisa, é necessário dizer que a informação existe desde os primórdios. Portanto, todas as "eras" foram recheadas de informação, não apenas a atual. Se tomarmos isso como um objeto de estudo, certamente chegaremos à conclusão de que se trata de um conceito híbrido, que não acrescenta nada em termos científicos. Seguindo o mesmo caminho está a "tecnologia da informação". Para mim, esse termo não significa nada, é muito vago. O termo correto é "tecnologia do conhecimento", pois por meio da tecnologia é que acessamos as informações que, ao serem bem-entendidas e bem-interpretadas, se transformarão em conhecimento.

Você está no Brasil para participar do Segundo Colóquio Brasil-México. Por qual motivo dois países aparentemente distantes sentiram a necessidade de discutir os temas relacionados à Ciência da Comunicação?

González Todo intercâmbio é importante, independentemente da posição geográfica ou da modalidade de ciência de cada um. Porém, desde o primeiro encontro houve uma afinidade muito grande entre os cientistas. Isso se deve, em grande parte, à semelhança dos problemas sociais existentes nos dois países. Dentre eles estão: as diferenças, as desigualdades e injustiças sociais. Por outro lado, não podemos limitar esse trabalho ao Brasil e ao México. Acredito que determinar territórios de estudos não seja o melhor caminho. Temos de tomar esses encontros com um ponto de partida para o desenvolvimento de estudos bilaterais e colaborativos, que tragam benefícios não só para ambos os países, mas para toda a América Latina.

Qual é a importância dos "meios de comunicação" para uma sociedade?

González Para mim, o termo "meios de comunicação" não condiz com o papel que eles exercem dentro de uma sociedade organizada. Na verdade, eles não são meios nem comunicação. São sistemas de comunicação, ferramentas que permitem a produção de um vínculo social. Não quero dizer que elas não tenham sua devida importância. Nosso trabalho consiste, também, em estudar a integração e a relação desses elementos. Todas as "ecologias simbólicas" dependem ou envolvem "psicologias de comunicação", "psicologias de informação" e "psicologias de conhecimento", que são perfeitamente estudáveis no passado, no presente e no futuro. Isso implica em entrar em detalhes das formas de comunicação mais tradicionais, herdadas e incorporadas às atuais sociedades, como as conhecidas: cultura de informação, cultura de comunicação e cultura de conhecimento.

Atualmente, até ônibus e trens de metrô têm se tornado meios de comunicação. Você acredita que esse "bombardeio" de informações trará algum malefício à sociedade no futuro?

González Ainda tenho minhas dúvidas se estamos vivendo sob excesso de informação. Em minha opinião, o que está acontecendo é que as empresas que se dedicam a fazer comunicação transformaram-na num produto totalmente comercial, até por questão de sobrevivência. Até uma mesa de bar virou motivo para aplicação de logomarcas e campanhas publicitárias. Com certeza não há mais conteúdo na informação. Para que a mensagem seja absorvida com maior facilidade, é necessário que as informações cheguem ao destino com maior rapidez e consistência. E quanto mais mastigadas, melhor. Assim, livra o usuário do "pensar". Talvez o maior problema que podemos enfrentar no futuro seja essa falta do "pensar".

No caso da internet, ela pode ser vista como uma categoria de estudos?

González Esse é o maior desafio para nós, cientistas da comunicação. Não há dúvidas de que a rede mundial de computadores nos trouxe benefícios. Porém, precisamos pensar o assunto com bastante racionalidade. Na infinidade de informações existentes na internet vejo que há mais ruído do que informação. Ou seja, nem tudo o que lemos é algo verdadeiro, legítimo. É comum vermos definições diferentes para um mesmo objeto. Isso, em minha opinião, traz imprecisões que podem ser altamente maléficas para o desenvolvimento de uma sociedade organizada.

Sendo assim, há pouca informação de qualidade na rede mundial de computadores?

González Sem dúvida. A partir do momento em que cada um de nós pode publicar algo na internet, tornase difícil saber qual a qualidade e a veracidade dessas informações. E a única maneira de diferenciarmos informação de ruído é quando processamos a informação. Ao contrário de antigamente, quando os livros e as enciclopédias eram acessados por poucos, a internet veio para democratizar isso. No entanto, vejo que há muitos investimentos em infraestrutura tecnológica e pouco investimento em infraestrutura humana. Disponibilizar internet a todos é algo realmente fantástico sob o ponto de vista social. Mas o maior problema está no processo de uso. Ou seja, não adianta nada a pessoa saber ler e escrever e não saber se o objeto que está pesquisando na internet tem ou não fundamento científico, se a informação encontrada tem ou não qualidade, veracidade. A informação só se torna informação quando nós lhe damos um formato. Sem isso, ela torna-se algo vazio, sem sentido.

Está sugerindo que a má qualidade da navegação está relacionada à má formação acadêmica do usuário?

González Não necessariamente isso. O que quero dizer é que, independentemente da condição social e da formação acadêmica, todos estão tendo acesso à internet: o rico, o pobre, o índio, o universitário, o analfabeto. Com essa enorme variação no perfil do usuário torna-se praticamente impossível exigir que todos tenham a mesma percepção e façam a mesma interpretação do mesmo conteúdo. Imagine a seguinte cena: um índio e um homem branco sentados num ponto de ônibus de uma cidade grande qualquer.

Minutos depois chega ao ponto um ônibus pintado de vermelho e com a logomarca de uma cerveja. Para o índio, que não sabe o que significa aquela marca, a novidade está no ônibus, algo incomum em sua tribo. Já o homem branco, acostumado a ver ônibus em sua cidade, se prende mais à propaganda, que é a única novidade que lhe vem aos olhos. É exatamente a essa estrutura humana que me refiro. Num universo em que todos vêm a mesma coisa, o que vai fazer que aquele conteúdo seja bom, de qualidade e represente exatamente a mesma coisa para ambos os indivíduos é a capacidade que cada um tem em entender o que aquilo realmente significa.

Por isso, mantenho o que disse: para que a internet seja mais eficaz como sistema de comunicação é preciso que haja uma qualidade melhor na percepção e interpretação dos objetos, pois não é o objeto que informa algo. É o pensamento que transforma a visão em informação.

"Os meios de comunicação não são meios nem comunicação, mas ferramentas que permitem a produção de um vínculo social"

Atualmente, você está realizando um estudo sobre o desenvolvimento da cibercultura no México. Em que consiste esse estudo?

González Consiste em estudar como uma comunidade emergente de conhecimento local se relaciona com as novas tecnologias. E de que maneira a chegada de novos sistemas de comunicação influencia no desenvolvimento da mesma comunidade. O trabalho é tão complexo que hoje estou estudando uma civilização que nasceu, cresceu e se estruturou no meio do deserto mexicano. Muitos comentam que meu trabalho está mais para arqueologia do que para ciência. No entanto, minha felicidade está em trabalhar com pessoas e estudar o antigo, sem ter a obrigação de falar da evolução das máquinas.

Pode revelar alguma descoberta obtida com esse trabalho?

González Muitos pensam que o desenvolvimento da cibercultura está relacionado ao desenvolvimento da internet. Mas, após anos de estudos, chegamos à conclusão de que são totalmente opostos. Ao desenvolver-se em sociedades autossuficientes, organizadas e que produzem seus próprios sistemas de comunicação, a cibercultura propõe a criação de uma estrutura única e coletiva de interpretação dos objetos. Já a internet propõe exatamente o contrário. Ou seja, a interpretação é altamente individualista: você na "sua" casa, no "seu" computador, diante do "seu" monitor, criando "suas" próprias percepções a respeito de "suas" próprias pesquisas. Enfim, a cibercultura se apropria das tecnologias que, supostamente, foram desenhadas para operar individualmente, para desenvolver uma comunidade "coletivamente".

A cada dia, os novos meios de comunicação distanciam ainda mais as pessoas. Existe a possibilidade disso se agravar nas próximas décadas?

González Gostaria muito de poder responder a essa pergunta, mas só o tempo dirá. Certamente todos somos cúmplices do que nos acontece hoje. E se hoje somos massacrados pelos meios de comunicação, a culpa também é nossa, por não percebermos o que não percebemos. Para que fique mais claro, vou usar meus óculos como exemplo. Eles (óculos) têm lentes alaranjadas e estão sujos. Quando tiro-os do rosto, vejo o dia mais claro e mais limpo. Quando volto a usá-los, vejo o mesmo dia mais alaranjado, com tons de marrom e pequenos detritos, que podem me sugerir que o céu está sujo. Enfim, caso eu não tire os óculos nem para dormir, precisarei que outra pessoa me diga e me mostre o que eu não estava percebendo: que o céu estava azul e limpo. E esse papel de avisar o que não estamos percebendo é do cientista. Ao menos, deveria ser.

Revista Sociologia

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