quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A infância dos povos

Fabiano Lemos

F. W. Nietzsche

Quando queremos considerar a infância dos povos sem nos lançarmos em um mar de dúvidas, do qual muitas vezes se deixaram inferir conclusões perigosas para a religião e para a história, precisamos esclarecer, antes de mais nada, uma questão na qual se baseia o desdobramento da consideração a seguir. A infância dos povos – uma condição que pode ser demonstrada mais pela dedução dos fundamentos de um lei geral da natureza que pelos fatos históricos – nos leva de volta ao tempo próximo da criação do mundo, ou, ao menos, da criação dos homens. Devemos e podemos supor, então, que o homem, dotado por Deus com o primeiro germe de toda a cultura [Bildung], linguagem e religião, viveu uma época de florescência, ou um período de ouro sobre a terra, após o qual, no entanto, progressivamente deixou decair, sem consideração, sua dignidade e altivez em um estado animal, desenfreado, do qual somente poucos povos, dotados de uma particular impetuosidade espiritual, teriam a sorte de ter saído; ou sua formação espiritual [geistige Bildung] se manteve, e, apesar dos danos à pureza original, os povos mais cultos, artísticos e mais relevantes para a história mundial, se educaram? Assim, a cultura [Kultur] de muitos povos seria algo de original, e a bestialidade e baixeza espiritual de outras nações, uma decadência da civilidade [Gesittung] anterior. Uma outra perspectiva, deixa o homem se erguer lentamente de um estado animal em direção a uma alta completude. Essa perspectiva é certamente correspondente, pelo menos parcialmente, a um certo desenvolvimento do homem; mas quando dirigimos nossos olhos para próximo do ponto de vista animal, então devemos perguntar admirados, antes de mais nada, por onde podem se desenvolver, a partir do baixo e do bestial, as florescências mais nobres da cultura [Kultur]. Algum povo que conhecemos já marchou, sem influência externa, para fora de um estado de natureza? Com isso se coloca uma outra questão, próxima àquela – se é particularmente possível que, de um casal humano, tenham podido se formar [bilden] tantas raças completamente distintas. Mesmo quando se quis resolver essa dúvida com os fundamentos da ciência da natureza, ainda não se disse, com isso, que a forma [Form] humana, que a formação [Bildung] humana, sempre foi firme e incisiva, que ela não poderia incorporar em si, inicialmente, uma nova impressão, que depois se consolidaria, duradoura e estável, sobre todas as espécies, através de um adensamento progressivo. Querer forçar uma resolução para essa questão, seja em minha perspectiva, seja de forma absolutamente necessária, resulta em apaziguar um conflito muito equívoco; eu escolho precisamente a primeira opinião, a de que os homens procuram se prover de cultura [Kultur], e, depois, alguns se tornam bárbaros sob a influência dos maiores eventos mundiais e revoluções, enquanto outros continuam a se deixar desenvolver de acordo com o caminho inicial da cultura [Kultur]. Essa mudança também não é tão artificial quanto nos parece inicialmente, especialmente se se tem em consideração como os homens se dispersaram, progressiva e ocasionalmente, e em grandes territórios; como, depois, necessariamente, a cultura [Bildung] anterior, da qual os primeiros imigrantes ainda se recordavam, teve, em uma posteridade ampliada, progressivamente, de se dobrar e terminar, até que, mais uma vez, novas impressões, através do contato com nações estrangeiras já civilizadas, produzisse, por assim dizer, uma lembrança, que despertou algo que há muito tempo havia se apagado e, deste modo, ensinasse de novo o primeiro grau da cultura [Kultur].

Em seguida, queremos considerar a infância dos povos, em especial entre aqueles que preservaram em si uma cultura [Kultur] prévia e que se desenvolveram em uma magnífica florescência.

O que esses povos possuíam era, antes de mais nada, sua língua, o elemento fundador, aquilo que une um grupo de homens como um povo, e que será a base de todo desenvolvimento posterior.

Nós podemos e temos de supor uma língua original que tenha preservado em si as ramificações de todas as reminiscências de línguas que, no entanto, desapareceram; segundo a qual os homens se dispersaram, enquanto sua posteridade se reproduzia infinitamente. Sobre ela, podemos apenas alimentar conjecturas; certamente ela era pobre em palavras e continha somente os conceitos sensíveis [sinnlichen Begriffen]; as primeiras abstrações Abstraktionen], como propriedades dos homens, receberam seus nomes a partir de coisas análogas. Qualquer língua-filha derivada dela aumentou o número de palavras segundo suas necessidades, após o que cada uma adicionou, ainda, seu caráter à contemplação tranquila e à profundidade reflexiva.
A religião desses povos é a segunda coisa que queremos considerar neles. Aí, sua relaçào com

Deus se figurou tão pueril e intimamente, a ponto de carregarem os nomes de filhos de Deus, que temos de conceber seu serviço religioso como sendo muito infantil. Despertou neles o desejo de preparar para seu Pai uma oferenda; eles escolheram o que lhes era mais caro, mais valioso em suas posses e lhe trouxeram alegremente em sacrifício. Pressionados pelo incômodo de suas faltas, procuraram se reconciliar com a ira paterna com sacrifícios e ofertas. Seu coração foi tocado pelas dádivas de seu Deus, pela salvação de um perigo iminente, por sua todopoderosas grandeza e força, que falou através do trovão, cujos mensageiros são o relâmpago e a tempestade, diante da qual as montanhas tremem e os montes desmoronam.

Admiração e espanto sublime os tomam, a fumaça sacrificial sobe alto no éter azul; sua boca dilata em louvor e glória ao Todo-Poderoso. E o medo e o termor continua a lhes dominar, um perigo iminente acena diante de seus olhos, seu olhar cai, cheio de preocupação, sobre os queridos membros da família, sobre seus bens mais amados; um suspiro sai de seu peito, eles reconhecem sua impotência, eles reconhecem que são fracos e desamparados. Seus pedidos
sobem ao trono celestial, sua súplica clama pelo auxílio do Deus todo-poderoso, misericordioso.

As intuições [Anschauungen] que um serviço religioso coloca como fundamento são tão naturais e espontâneas, e correspondem de tal modo à relação mais próxima com o criador todopoderoso e protetor benevolente, que nós podemos praticamente conceber uma relação íntima de Deus com os homens. Foi assim que, principalmente, a figura da divindade se tornou compreendida sensivelmente. A frase tão singularmente séria e cheia de significado “Deus é um espírito”, adequada à sua inocência natural e a seu pouco desenvolvimento conceitual, teria sido para eles um segredo escondido, um enigma indecifrável. Uma outra influência que a religião destes povos sofreu, é a tendência ao maravilhoso, à fé nas aparências e à interpretação dos sonhos, propriedades que poderíamos denominar praticamente como características fundamentais da natureza humana, que, por si só, não pode se deslocar completamente em direção a uma cultura [Kultur] mais avançada. Talvez essa propensão ao sobrenatural não seja senão uma espécie de instinto [Instinkt] divino dos homens, sua pulsão [Trieb] para o celestial e o espiritual. Esta direção do espírito foi também o fundamento com que uma doutrina religiosa tão simples gradualmente gerou uma mistura pagã, ou mesmo resultou em um progressivo politeísmo.

Consideremos os judeus, como seu mais puro serviço religioso em contato ou em guerra com outros povos assumiu muitas formas estrangeiras, que, ao passar do tempo, quase se naturalizaram como doutrinas de fé israelitas. A própria idéia de Deus foi tornada mais sublime e adequada ao espírito popular mais avançado, mas também mais distante.é verdade que não raramente aparecem os pensamentos que, de certa forma, atravessaram toda a antiguidade judaica – que Jeová seja Deus somente de Israel, e que, sobre todos os outros deuses, reina como deus mais alto; certamente ecos de um politeísmo, contudo, não desenvolvido. Em outros povos, que eram dotados das nobres vantagens do espírito e do vantajoso sentido filosófico de profundidade, as sublimes doutrinas de um espírito distante ultrapassaram a simples fé em um

Deus. As forças selvagens da Natureza, o surgimento dos anos e do tempo, propriedades particularmente divinas, formaram uma obscura apresentação de uma quantidade de seres superpoderosos, em cujas mãos estaria o destino de todos os indivíduos. O pensamento sobre os bons e maus espíritos despertou. O cuidado de atrair para si os bons, de afastar de si os maus, encheu o peito de todos os homens. Ocorreu, então, que os homens com sentido de profundidade, os que carregavam as vibrações de uma imaginação desenfreada, se deram como tarefa serem os enviados dos mais altos deuses, fundaram um novo culto divino, e disseminaram em seu povo, a partir de então, através da doutrina e do exemplo, o que se referia aos fundamentos da moral.

Certamente de modo similar tiveram lugar as religiões dos povos mais espitualizados da antigüidade, na medida em que se formaram segundo o caráter de cada nação em particular.

Estas doutrinas divinas estão, ainda em sua origem, completamente separadas das mitologias dos séculos seguintes, quando os dogmas fundamentais de uma quantidade fantástica de fábulas foi distorcido e eliminado. E, assim, uma religião que continua a se desenvolver, precisa sempre, e intermitentemente, levar a um ponto de vista no qual o desejo de uma doutrina mais pura, mais natural, se revela, no qual filósofos inspirados rejeitam o único Deus como fonte de todo ser. É tarefa da religião cristã se antecipar a esse desenvolvimento e despertar a necessidade de uma doutrina mais sofisticada, mas que não operasse uma intervenção violenta e, desse modo, perturbadora e dissipativa, no progresso religioso de uma religião pagã. Mas, do mesmo modo, é necessário e adequado ao pensamento original do cristianismo, que todos os povos extraiam de sua condição desgraçada, tão logo quanto possível, o amor, e que sigam em direção aos braços da única e benfazeja igreja.

Consideramos, assim, como se desenvolveram os Estados desses povos, e em que ordem se dá a forma de governo. Mas aí precisamos, antes de mais nada, falar algumas palavras sobre o estilo de vida geral destes povos no menor grau de sua cultura [Kultur]. Tão descontentes com a dura vida de pescador quanto com o monótono estilo de vida dos povos caçadores, eles procuram as estepes mais extensas e ricas em pasto, que se prestavam com facilidade ao cultivo.

Aí eles estabelecem, com outras famílias, redidência fixa, na qual, através de uma comunidade social, acreditam se proteger contra o ataque de povos saqueadores vizinhos. Essa união se estreita ainda mais através dos casamentos, e, assim, estas famílias se misturam cada vez mais umas às outras. Como se desenvolvem aí, facilmente, todos os mais delicados sentimentos, que fazem da pátria dos homens, dos pais, dos parentes e amigos, algo sempre querido e inesquecível:
que exemplos emocionantes de uma relação familiar íntima e um sutil sentimento de amizade entre os homens não encontramos nas narrativas dos escritos sagrados, que nos desenha uma pintura tão amável de uma vida patriarcal! Um tal grau de cultura [Bildung] se externaliza também na hospitalidade, uma virtude que já se mostra nos mais antigos povos que conhecemos, e que nos coloca diante dos olhos, mais confiável que qualquer outra, uma civilidade sutil e uma alta dignidade humana. Essa época gozava de uma reputação particular; os homens mais velhos e mais reverenciados eram os avatares de suas famílias, os conselheiros da juventude, os pastores efetivos, os juízes dos litigantes; suas bençãos atribuíam maravilhosa força, sua partida estava associada a uma tristeza geral, já que todos tinham perdido seu pai.

Assim repousava todo o poder nas mãos dos patriarcas, e isso freqüentemente não era irrelevante, especialmente para aqueles tempos onde quase toda cidade tinha um rei que não podia viver em paz com as localidades adjacentes. Esta condição pertence, entretanto, apenas aos tempos mais antigos; se pensarmos a partir de Israel, que se considerou ainda por muitos séculos como um reino divino e elegeu os soberanos com pompa quase oriental, e que, somente mais tarde, quando a força e a florescência haviam quase sumido, ergueram-se aí reis por toda parte, e geralmente de modo repentino, gerados, principalmente, pela urgência das circunstâncias; é por isso que em nenhum momento pareceu necessário a muitas famílias recorrer à proteção de um homem importante quando a guerra e o assassinato se inflamaram devastadora e aniquiladoramente nas fronteiras. Estes reis souberam, em seguida, manter sua reputação não apenas durante seu governo, mas também passá-la à posteridade, de modo que o reinado freqüentemente permanecia, através de muitos séculos, em uma família privilegiada. Sob um tal governo, o espírito popular precisou se deselvolver mais fortemente, o brilho de seus primeiros feitos de guerra encorajaram novas conquistas, o contato com outros povos exerceu uma influência benéfica em seu estilo de vida; o cultivo da terra não permaneceu seu único negócio; a agricultura se expandiu – uma evidência de que o espírito não se preocupava apenas com os cuidados com o presente, mas também começava a olhar o futuro refletida e preventivamente.

Os primeiros traços da arte se mostram; grandes construções, menos pela sua beleza que por suas formas de efeito monumental, seriam iniciadas com espantoso esforço. Perpetuar-se através de algo de tal magnificiência, deve ter sido a causa principal de todas estas obras grandiosas, inspirar a milenar força dos povos primitivos e sua imponência ainda atual.

Sabemos também que a música destes povos já era conhecida, e que ela foi logo utilzada tanto para divertimento quanto para o despertar de uma vontade de luta mais selvagem, ou em um culto religioso festivo.

Sabemos também que já descendiam destes tempos os primórdios da arte poética; se algo poderoso erguia o espírito ainda bruto, se ele elevava sua imaginação mais alto, então sua língua se submetia ao ritmo da música. Em imagens sublimes e com força mais potente ele cantava o louvour do Deus todo-poderoso, a glória da natureza, a derrota dos orgulhosos inimigos. O homem começou logo a refletir sobre o edifício do universo; ele reconheceu o significado dos astros, e acreditou notar em si a influência deles. No lugar dos corpos celestes conjurou maravilhosos sistemas e significados. E além de muitas coisas fabulosas, ele fez também a mais importante descoberta – ele utilizou o curso solar e lunar para engenhosos cálculos.

O comércio com outros povos, que até então se baseava na troca, foi singularmente refinado pelo uso dos metais, e é muito provável que pastores tenham descoberto primeiro estas pedras brilhantes no pé de montanhas ricas em metal, que, por sua dureza e beleza, logo assumiram valor e vigência generalizados. Que o metal e o ferro já fossem conhecidos nos tempos mais remotos nos ensina a sagrada Escritura. Ouro e prata teriam sido mais tarde encontrados e contribuíram mais para a expansão da arte e da vida luxuosa que para um uso prático.

Então, a prosperidade, os costumes e o comércio aumentaram cada vez mais; despertou a necessidade de preservar para a posteridade, através da descrição de relatos, as mais importantes leis e acontecimentos, e de perpetuar o brilho do tempo presente. Estamos em um ponto onde o espírito humano faz a mais importante descoberta, cumpre o feito mais bem-sucedido de toda a antigüidade. Logo que um povo tem, em primeiro lugar, sua língua escrita, é incorporado à série de povos cosmopolitas, e pode produzir, através da palavra e da ação algo significativo para o caminho do desenvolvimento de toda a humanidade.

Basta! O que eu tenho a dizer a respeito da decadência da cultura em certos povos guardo para uma próxima vez. Mas se alguém deve me acusar de, no assunto sobre o qual acabei de falar ter enfatizado muito pouco os aspectos obscuros destes povos, peço que considerem que nos deslocamos com alegria e amor para todos os períodos de desenvolvimento, nos quais uma avalanche plena de luz desemboca em todos os séculos; mas não para desenhar também cores sombrias em uma pintura que reluz em brilho gentil e frescor vivo em todos as eras.

Revista Índice [http://www.revistaindice.com.br], vol. 01, n. 01, 2009/ 2

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