quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Crise de 1929 atingiu economia e mudou a ordem política no Brasil Leia Mais: Crise de 1929 atingiu economia e mudou a ordem política no Brasil

Plantação da rubiácea no interior paulista: o 'estado com um bilhão de pés de café'
http://www.passeiweb.com

GIULIANA VALLONE
da Folha Online

A Crise de 1929 atingiu em cheio a economia do Brasil, muito dependente das exportações de um único produto, o café. Mas, mais do que gerar dificuldades econômicas, o crash que completa 80 anos em 2009 provocou uma mudança no foco de poder no país, acabando com um pacto político interno que já durava mais de trinta anos.

Entre os anos de 1894 e 1930, o presidente da República foi eleito pelos paulistas barões do café num mandato, e no outro pelos pecuaristas mineiros. Era a chamada política do café com leite, viabilizada pela hegemonia da oligarquia cafeeira paulista na época e que garantiu a formação de uma economia agrícola praticamente monoexportadora no país.

Em 1929, a quebra nos mercados acionários do mundo provocou uma forte queda nos preços internacionais das commodities. "O Brasil era fortemente dependente das exportações de café, e tinha uma enorme dívida externa, que precisava ser financiada com essas vendas", afirma o professor de História Econômica da FEA-USP, Renato Colistete.

Além da queda nos preços, a crise provocou uma diminuição na renda e no consumo no mundo todo, prejudicando ainda mais as vendas de café. As exportações do produto, que chegaram a US$ 445 milhões em 1929, caíram para US$ 180 milhões em 1930. A cotação da saca no mercado internacional, caiu quase 90% em um ano.

Fogueira

Na tentativa de conter a queda, o governo federal comprou grande parte dos estoques dos produtores, e queimou 80 milhões de sacas do produto. "A ideia era queimar para diminuir a oferta e aumentar o preço internacional, porque o Brasil era o maior país exportador", segundo Marcos Fernandes, coordenador do Centro de Estudos dos Processos de Decisão da FGV-SP.

"A crise arruinou a oligarquia cafeeira, que já sofria pressões e contestações dos diferentes grupos urbanos e das oligarquias dissidentes de outros Estados, que almejavam o controle político do Brasil", explica Wagner Pinheiro Pereira, doutor em História pela USP e autor do livro "24 de Outubro de 1929: A Quebra da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão".

Poder

O que aconteceu, então, foi que o foco do poder no país foi deslocado para o gaúcho Getúlio Vargas, que se tornou presidente da República após a Revolução de 1930. "Do ponto de vista político, a crise foi importante porque desviou o foco do poder para Getúlio Vargas e para um projeto de industrialização", diz Fernandes.

O novo presidente, porém, sabia que, mesmo com o fim da oligarquia paulista, o café não podia ser deixado de lado. Assumiu, então, uma nova política de defesa da cafeicultura, na tentativa de equilibrar os preços e evitar a superprodução.

"Não podemos esquecer que Getúlio era o pai dos pobres e a mãe dos ricos", diz Fernandes. "Ele tratou de não romper tão radicalmente com a oligarquia agrícola, e o café continuou sendo importante no Brasil. Isso começa a mudar mesmo a partir de Juscelino Kubitschek e, principalmente, a partir do Golpe de 1964."

A Grande Depressão, porém, dificultou os esforços do governo para ajudar o café e "somente no final da década de 1930 o café começou a recuperar os bons preços nos mercados internacionais", segundo Pereira.

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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Guerra dos Boxers

partilha da China

Rainer Gonçalves Sousa
A Guerra dos Boxers foi um conflito ocorrido na China entre os anos de 1899 e 1900, onde um violento grupo nacionalista lutava contra a presença dos estrangeiros em seu território. Inconformados com a inapetência do poder imperial em conter a intervenção imperialista no país, um grupo de lutadores da China desenvolveu uma sociedade secreta, conhecida como “A Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros”, para lutar contra os imperialistas.

Com o apoio velado das autoridades locais, os boxers empreenderam as suas primeiras ações realizando pequenos atos de vandalismo ao cortar linhas telegráficas, destruir ferrovias e perseguir os missionários cristãos. Em suma, apesar de uma organização incipiente, os participantes dessa revolta atacavam tudo aquilo que poderia representar a dominação dos ocidentais em seu país. Paulatinamente, o triunfo das primeiras ações impeliu o planejamento de ataques com maior gravidade.

O crescimento da situação hostil obrigou as nações imperialistas a organizarem um exército que desarticularia as ações violentas organizadas pelos boxers. Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, França, Japão, Itália e Rússia cederam soldados para tomar a cidade de Pequim, o principal foco dos conflitos. A invasão estrangeira – ocorrida no final de maio de 1900 – foi logo respondida com um novo ataque dos boxers à pista de corrida dos estrangeiros e o isolamento do bairro das Embaixadas.

Enquanto os civis estrangeiros e os cristãos tentavam se refugiar da onda de ataques, os vários representantes políticos da autoridade estrangeira resistiam à espera de uma forte reprimenda contra os chineses. Entre os meses de julho e agosto, as tropas estrangeiras lutaram contra os boxers e os membros do exército imperial que apoiavam o levante. Percebendo o recuo dos chineses, as nações imperialistas fizeram uma série de exigências em troca da preservação dos territórios.

No dia 7 de setembro de 1901, a Paz ou Protocolo de Pequim oficializou os acordos que puseram fim à Guerra dos Boxers. Derrotado, o governo chinês se viu obrigado a pagar uma pesada indenização em ouro e liberar novos portos às embarcações estrangeiras. Além disso, os imperialistas impuseram a sua autoridade na capital do país e proibiram os chineses de importarem armamentos. Nas décadas seguintes, apesar do fracasso, outros levantes determinaram o fim da dominação estrangeira na China.

Por Rainer Sousa
Mestre em História
http://mundoeducacao.uol.com.br

SERES SOBRENATURAIS: TUTU


Entidade com que se mete medo às crianças quando choram. É roncador. A forma em que o idealizam na Bahia é a de um catitu ou porco do mato. Deste primeiro nome talvez se originasse o termo Tutu, que é popular em todo o Brasil. Ouvi porém dizer que é voz africana e que era usada pelas amas negras. Na Bahia também Tutu-cambê: Olhe o Tutu!... E vem ele! Quando os meninos choram o Tutu vem comer eles... não chore não!

O Tutu-Cambê é um bicho muito feio e só come os meninos bonitos... Aé vem o Tutu!...

Às vezes o Tutu-Cambê, fazendo a devida roncaria, aparece. Para isso cobre-se uma pessoa com um pano andando devagar e roncando.

O Tutu com facilidade se enxota: basta bater-se com o pé no chão e dizer-se: Xô!... Tutu, vai-te embora que o menino não chora mais.

No sul da província de Minas Gerais o Tutu anda oculto atrás das portas e a sua voz é de trovão. Aí é frase popular: "Oia Tutu qui vem comê minino... não como meu fio não, não leva meu fio não, Tutu!...

O Tutu do povo brasileiro é idêntico ao Papão e à Coca de Portugal.

Nas cantigas com que as amas costumam acalentar às crianças quase sempre entra o Tutu. São elas as mais das vezes cantadas de improviso e por isso em muitas nota-se-lhes os defeitos da rima. A seguinte é popular na Bahia; dou-o como documento, porque se refere principalmente ao Tutu-Zambê ou Cambê:

Tutu Zambê

Vem papá sinhazinha;
Tutu vá s’imbora
Sinhazinha ‘stá dormindo.

Tutu Zambê
Vem papá iaiazinha,
Bébe, aí, boi,
Iaiazinha ‘stá dormindo,
Tutu vá ‘s’embora.

Evem o Tutu
Por detrás do murungu,
Pra comer sinhazinha
C’um pedacinho de angu.

Cala a boca, Iaiazinha,
Que seu pai já vem já,
Foi buscar timão de seda,
Forrado de tafetá.

No interior da província do Rio de Janeiro cantam monotonamente as pretas, umas quadrinhas para fazerem as crianças dormir. Uma delas diz assim:

Tutu vá s’embora
Pra cima do telhado,
Deixa o nhonhô
Dormir sossegado.

O senhor doutor Sílvio Romero nos seus Cantos populares do Brasil, v. 1, sob nº 181, coligiu no Rio de Janeiro uma canção que termina com a seguinte estrofe:

Tu-tu-ru-tu-tu
Lá detrás do murundu...
Teu pai e tua mãe
Que te comam com angu.

Também a ouvi cantar no Rio de Janeiro desgarrada da estrofe que a antecede na coleção do senhor doutor Sílvio Romero apenas com variante no segundo verso, que diz:

- Por detrás do murundu...

Na província do Rio de Janeiro igualmente coligi a canção do Tutu, que é muito popular entre as amas negras para acalentar as crianças e que apenas se reduz a estes versos:

Tu-ru-tu-tu
Do velho murundu,
Agarra este menino
Comei-o com angu.

Em Campos, ainda na província do Rio de Janeiro, são populares estas duas estrofes:

Tu-tu-ru-tu
Senhor Capitão,
Pegai este menino
Comei com feijão.

Tu-tu-ru-tu
Por detrás do murundu,
Pegai este menino
Comei com angu.

Ora, como se vê na Bahia diz-se murungu que rima perfeitamente nas canções com "angu", voz africana, e no Rio de Janeiro, murundu, que dão como significação de um pequeno monte, por detrás do qual se acha o Tutu.

Murungu é palavra guarani ou tupi e nome de árvore natural do país, da família das leguminosas (Erythrina corallodendron, Linn). Na Bahia é este o nome que lhe dão; mas no Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco e Alagoas - o de mulungu. Como o tijim ou jequiriti, a semente desta árvore é muito popular entre as crianças pela beleza de sua cor vermelha. Ainda na farmácia brasileira o murungu é empregado. Trata-se pois de uma árvore cujo nome é constantemente pronunciado com a maior clareza.

Entre os brasileiros é freqüente, como lapso de língua, ouvir-se a transformação do l em r e vice-versa. Se porém a palavra murungu da canção da Bahia é brasileira ou corrupção de murundu das do Rio de Janeiro e esta mulundia africana (mbunda ou angolense), que significa exatamente monte, segundo Cannecattin no Dicionário da língua bunda ou angolense, é o que não posso resolver.

Entretanto se na Bahia é realmente palavra Zambê que aduzem ao Tutu e não Cambê (que pode também ser voz africana ou tupi ou ainda corrupção de "comer" português) e se o murungu da canção é a voz mbunda mulundu alterada, é provável o Tutu brasileiro, mas herdado da raça africana.

Zambê será corrupção de Zambi, palavra angolense que significa Deus? ou de Zumbi, voz também angolense que quer dizer alma do outro mundo? Cambé pode talvez ser corrupção do Tambi, que segundo Batista Caetano significa pêlo erguido; e como na Bahia dão ao Tutu a forma de porco do mato, é natural que o seu cabelo seja erguido, eriçado, como o tem o catitu quando está zangado. Em umas notas que possuo tomadas pelo doutor Batista Caetano do velho caboclo Pedro João Vieira, na antiga aldeia de São José dos Campos, acham-se as palavras Cambê (kamby, ort. de Bat. Caet.) significando leite, e Cambu, mamar. No Vocabulário impresso de Batista Caetano encontra-se além de cambi, leite e cambu, mamar, o verbo cambi, que significa magoar, ofender, machucar, etc. Não se deve ainda esquecer dizer que Camba, voz angolense, significa amigo.

De parte a parte, das raças indígenas e africana, apareciam objetos, trajes, costumes e crenças novas que não tinham equivalente na linguagem dos invasores. A língua dos indígenas de todo o litoral era o tupi, mas a dos negros compreendia diversos grupos formados por idiomas particulares. Daí era grande a confusão de línguas africanas para poder entrar com mais facilidade maior número de palavras, na formação da linguagem brasileira. É costume nosso dizermos de qualquer palavra dos negros da Africa – É voz africana, sem contudo procurarmos designar ou indagar a que língua ou idioma pertence ela. É o mesmo que se dizer - É voz americana, referindo-se a algum termo dos povos indígenas da América, expressão vaga e que não se aplica senão ao continente a que ela se filia. Assim nos primeiros tempos da introdução dos negros as diversas línguas africanas andavam muito em voga, juntamente com o tupi, de modo que a linguagem falada era quase sempre mesclada de vozes que só os naturais e habitantes da terra compreendiam. Muitos desses vocábulos, como se sabe, ainda hoje permanecem; outros porém desapareceram de todo e de alguns que vão aparecendo nos documentos manuscritos até se desconhece o sentido. Não havia dicionaristas da língua portuguesa que o fosse coligindo, só mais tarde o brasileiro Morais e Silva foi que recolheu alguns para o seu dicionário. Aí estão por exemplo as produções do poeta Gregório de Matos, em parte publicadas ultimamente, em que se deparam dezenas de vocábulos por ele empregados, que hoje não se sabe qual a sua origem e o seu verdadeiro sentido. Apesar disso o poeta baiano como lingüista presta auxilio poderoso à linguagem brasileira. É o escritor que nos dá a idéia mais exata do modo de falar e escrever no Brasil no XVII século. O seu vocabulário é riquíssimo, principalmente em locuções e termos populares da Bahia e de Pernambuco, sem excetuar, já os de origem guarani, já os derivados das línguas africanas, e é o único documento daquele século que possuímos neste gênero de estudos.

É pois constante a dúvida de se saber ao certo a língua a que pertence esta ou aquela voz alterada que se encontra na escrita antiga ou mesmo muito popularizada na linguagem da família brasileira.

Hoje é que se discute a procedência das palavras mazombo, mameluco, emboaba, cafuz, cabo-verde, curiboca, carioca e outras muitas. O doutor Batista Caetano, o nosso saudoso Mestre, cuja perda será sempre lamentada por todos os que se interessam por estes assuntos, descobriu visos que a palavra carapuça era abañeênga ou guarani, procurando dar-lhe a etimologia; mas quando leu na carta de Vaz de Caminha que a tripulação da armada de Cabral, que descobriu o Brasil, distribuiu carapuças aos naturais da terra, antes que tivessem os portugueses qualquer contato com eles, viu que tinha caído em erro, erro que o Mestre muito se doía.

A que língua pois pertence a voz Tutu, se de origem africana ou tupi, ou se inteiramente brasileira, e o que não se sabe por ora.


(Vale Cabral. Alfredo do. "Achegas ao estudo do folclore". Em Cascudo, Luís da Câmara. Antologia do folclore brasileiro)

A história dos santos irmãos - São Cosme e São Damião



A história dos santos irmãos

São Cosme e São Damião são dois santos orientais, provavelmente martirizados em Egéia, Cilícia, Ásia Menor, região da atual Turquia, a 27 de setembro de 287, durante a perseguição do imperador Diocleciano (284-305). Historicamente, pouco se sabe sobre a vida destes dois irmãos médicos e, segundo a tradição, gêmeos. Seus restos mortais foram levados para Roma, durante o pontificado de João Félix, e depositados na igreja que tem seus nomes.

Seu culto divulgou-se intensamente pela Europa, principalmente na Itália, Flandres, França, Espanha e Portugal, onde várias igrejas foram construídas sob seu patronato. Considerados protetores dos cirugiões, eram padroeiros de diversas confrarias, como por exemplo, a Confrérie et College de Saint Côme, fundada em Paris, em 1226, a mais famosa associação médica da Europa e que existiu até a Revolução Francesa. Nas primeiras décadas do século XIX, pagava-se na Universidade de Coimbra a quantia de 480 réis pelo registro do diploma de medicina e 100 réis pelo exame de boticário, valores devidos à Irmandade dos Santos Cosme e Damião.

Estão ligados aos cultos dos deuses da reprodução, fecundação, germinação e moléstias sexuais. No Brasil, estão mais dedicados à defender da fome, das doenças do sexo e dos partos de gêmeos. No sincretismo religioso, os jeje-nagôs os identificaram como os orixás gêmeos sudaneses Ibeiji, que são a divinização do parto duplo. No seu diaoblacional, recebem festas também no candomblé, com ofertas de alimentos e reunião de amigos para danças, comidas e bebidas. Em grego são chamados de anargiros, o que significa sem dinheiro, por nunca receberem dinheiro em troca de seus serviços. Curavam não somente pessoas, mas também animais.

Conta a tradição popular que um dia, São Damião aceitou uma pequena oferta de uma mulher chamada Paládia, a quem havia curado de uma doença. São Cosme recriminou-lhe o gesto, dizendo que não queria ser enterrado junto a ele. Quando os cristãos recolheram seus restos mortais para sepultá-los, um camelo começou a bradar com voz humana, dizendo que enterrassem os dois irmãos juntos, uma vez que Damião recebera a oferta apenas para não humilhar a pobre mulher.

O passeio da peste


Viriato Padilha
Estamos em uma aldeia de índios batizados, situada à margem do rio Tieté.

Administra-a o venerando jesuíta, padre Domingos Salazar, homem dos seus cinqüenta anos, e que há vinte se ocupa na árdua missão da catequese, segregado da sociedade civilizada e do convívio dos seus irmãos da Ordem.

O sol começa a afundar-se por detrás das serranias azuis que se empinam ao longe; chilram cigarras no arvoredo de folhagem amarelada pela canícula; e a caboclada, que já terminou nesse dia os trabalhos a que a obriga o severo jesuíta, estira-se nas redes de tucum, a bocejar, enlanquecida pelo fortíssimo calor do dia.

O padre Domingos Salazar, com as mãos cruzadas sobre o peito magro, de fisionomia carrancuda, a remoer no cérebro um pensamento que, pelas rugas fundas da fronte, parece aflitivo, passeia vagarosamente na frente do seu ranchinho, um pouco afastado dos da tribo, e de vez em quando levanta os olhos para o céu onde leves nuvens se esgarçam, varridas por brisas altíssimas.

Já há um mês que não chove: o milho plantado pelos bugres está torcendo as folhas e secando o pendão, antes que o pólen se tenha derramado sobre a boneca e gerado o fruto; vão escasseando as águas correntes e as dos charcos começam a apodrecer, exalando emanações pestilenciais.

O padre Domingos Salazar sente-se incomodado com a prolongação da seca; o calor tornou-se insuportável; a colheita do milho e da mandioca está irremediavelmente perdida, e, o que é mais grave, anuncia-se a invasão de uma epidemia qualquer no aldeamento.

Já dois meninos, que andavam no brejo a pescar traíras, caíram com febres de mau caráter; já vagam bugres pelo mato, colhendo a casca do pau-pereira para rebater as malignas.

Indubitavelmente as coisas iam mal, e o padre Domingos Salazar sentia-se embaraçado sobre o modo de resolver a crise com que se achava a braços.

A aldeia distava cerca de trinta léguas do primeiro povoado colonial. Não havia remédios para debelar o mal, se irrompesse, e, além disso, a caboclada era refratária, por índole e natureza, a qualquer prescrição higiênica.

– João tá com febe, – disse de repente uma cabocla que surgira no oitão da cerca, agravando assim, com anúncio tão desagradável, o desassossego do jesuíta.

A cabocla trazia ao colo um menino de quatro para cinco anos, que tinha os olhos quebrados e a pele afogueada por intensa febre.

– Com certeza deixaste que se metesse com os outros pelos brejos. Agora aí o tens com uma maligna, talvez, – observou o padre Domingos Salazar em tom aborrecido e tomando o pulso ao doentinho. "Está ardendo em febre... É isso, não fazeis caso do que digo!... "

Diversos caboclos aproximaram-se para ver a criança enferma, e o padre Salazar, entrando no seu ranchinho, de lá trouxe um cobertor de lã.

– Agasalha o menino com este cobertor e.deita-o na rede. Ao mesmo tempo faze coser estas ervas em pouca água e logo que estiverem fervendo, tira a panela do fogo e vem dizer-me.

E voltando-se para os seus administrados que o rodeavam nesse momento, exclamou em tom imperativo:

– Previnam às mulheres que enquanto não chover não consintam que a criançada se meta pelos brejais. Há muitos dias que não chove, têm morrido peixes e caranguejos em grande quantidade, e com esta soalheira apodrecem e desprendem vapores que envenenam as criaturas.

Os caboclos ouviram em silêncio, habituados como se achavam a obedecer em tudo ao austero discípulo de Loiola. Um deles, porém, já velho e que era o cacique do bando aldeia do, abanou a cabeça, como que duvidando que a causa da enfermidade que começava a declarar-se entre os seus fossem as emanações pútridas dos charcos, e disse:

– Peste vem do brejo?! Hum! Pode ser, mas não tenho fé. – E voltando-se para os caboclos: – Não se lembram daquele tupinambá que passou por aqui na lua-nova?

– Que tem o tupinambá com as febres? – interrompeu o padre Salazar contrariado.

– Desconfio que ele andava passeando a peste. Não te lembras, padre, como ele caminhava tão vergado para o chão, sendo no entanto ainda moço? E parecia tão triste, tão cansado! Andava com certeza passeando a peste. Infelizes de nós!

Todos os caboclos aprovaram o que dissera o maioral, e o padre Salazar, que percebeu naquelas palavras a revelação de uma lenda religiosa ou de um mito, mordido pela curiosidade, abancou-se em um toro de madeira que havia no terreiro, e pediu ao índio velho que lhe contasse por que forma a peste passeava.

Então, o índio, sentando-se ao lado do padre, ao passo que os outros, interessados na audição da lenda, se acocoravam no chão, contou em tom pausado e grave a seguinte história:

* * *

Era no tempo dos cajus maduros, e todo o povo dos guaianases andava na colheita dos frutos, para com eles preparar o cajuí, a excelente bebida com a qual se embriagaria no poracé, a grande festa sagrada da nação.

Isto deu-se antes que os portugueses chegassem aqui pela primeira vez, e muitas gerações já se passaram depois que tal aconteceu.

Um homem daquele povo (Irerê-una se chamava ele), saiu uma manhã para colher caju, e tendo já enchido um grande panacu, como o sol estava muito quente, e ele se sentia um tanto cansado, deitou-se à sombra da árvore e adormeceu profundamente.

Todos se recolheram às suas casas, e Irerê-una lá ficou, dormindo a sono solto debaixo do cajueiro.

Quando despertou já o sol se ia sumindo atrás das serras e Irerê-una admirou-se de ter dormido tanto.

Logo levantou-se, e preparava-se para lançar o panacu às costas, quando uma visão estranha o fez pasmar, e por tal forma o assustou que lhe tirou os movimentos.

É que lá ao longe, por entre os últimos cajueiros da praia, assomava uma mulher muito alta e de singular aspecto e feições, envolta em longo sudário branco, que, com o andar e com a aragem vinda do mar, se agitava brandamente. Os cabelos em alvoroço lhe escapavam por baixo do sudário. A fisionomia era esquálida e severa. Os braços longos e ressequidos tinha-os ela cruzados sobre o seio no qual não se viam as eminências dos peitos. A pele de seu rosto era avermelhada, sanguínea e pintalgada de manchas negras e roxas, de um roxo de gangrena. Os olhos eram fundos, sumidos nas profundidades do rosto e despediam um lampejo constante, fino como a lâmina de uma faca.

A mulher ia cada vez se aproximando mais, e já estava perto... Irerê-una teve medo, muito mêdo, e voltando as costas ao medonho fantasma, tentou fugir...

Não o pôde, no entanto: a mulher-fantasma estendeu um braço muito longo, sem fim, e pousou a mão sobre o seu ombro, fazendo o infeliz deter-se.

Irerê-una soltou um grito de pavor, e caiu de joelhos, a tremer-lhe o corpo todo. O contato da mão da mulher estranha causara-lhe o efeito de uma cobra que se lhe enroscasse ao pescoço.

– Sabes quem sou? – perguntou a medonha aparição.

– Bem te conheço, és a peste! – respondeu Irerê-una, quase a sucumbir de medo e horror. – Poupa-me, deixa-me viver!

– Sim, sou a peste! – confirmou o fantasma.

– Andava à procura de um homem! Tu me apareceste, tanto melhor! Chegou o tempo de dar o meu passeio por entre os vivos, e assim desci do céu num raio de lua cheia. Escolhi-te; vais servir-me de montaria; desde já trepo em teus ombros, e tu me conduzirás a todas as nações desta terra, a todas as tabas, a todas as ocas. Vou fazer a minha colheita de vidas. Anda, homem, caminha... caminha!... Em paga de teu serviço, não te matarei: sobreviverás a todos os homens!

E dizendo isto, a peste saltou no cangote de Irerê-una, e, aí agarrando-se, começou o pobre índio a caminhar.

Irerê-una não sentia peso algum nas costas, porém todas as vezes que levantava a cabeça dava de rosto com a medonha mulher de rosto avermelhado, pintalgado de um roxo de gangrena.

* * *

E começaram a caminhar – o homem sempre carregando a assombrosa mulher.

Irerê-una levava a peste a toda a parte.

Tudo eram alegrias e festas pelas tabas, antes da sua passagem.

Bebia-se o cajuí, dançava-se o poracé e o yeroqui, tocava-se o boré e a inubia; o maracá chocalhava. Os homens contavam uns aos outros as suas façanhas de guerra e de caça; as mulheres cantavam; as crianças folgavam, cambalhotando na areia dos regatos, ou balançando-se nas cipoadas; as velha torravam a formiga vermelha para extraírem o veneno com que se ervam as setas.

Tudo era festas: defumava-se a carne dos animais mortos pelo matos; secava-se o peixe colhido nas piracemas; 1impavam-se os caminhos para a visita solene dos pajés.

Mas para logo mudavam-se as coisas, desde que por ali passava Irerê-una com o terrível fantasma que o cavalgava. Danças, restas, cantos de moças, prosas de guerra e de caça, folguedos de crianças, trabalhos divertidos – tudo desaparecia, para dar lugar ao pranto, aos gemidos, às dores cruciantes, às longas agonias e à morte.

Por onde Irerê-una passava, ficava um longo rastro de cadáveres, pela maior parte insepultos, a apodrecerem ao sol e servindo de pasto aos corvos.

Crianças, mulheres, guerreiros valentes, pajés venerandos, tudo a peste matava. As aldeias transformavam-se em tristonhas taperas, as canoas vogavam pelo rio abaixo abandonadas pelos remadores, às vezes transportando um cadáver colhido pela peste e por ela fulminado em meio da corrente.

* * *

Irerê-una levou primeiro a peste às aldeias de seus inimigos: aos caetés do sul, aos tupinambás da margem do mar, e depois, não havendo mais taba, nem oca, nem tujupar que não visitasse, foi obrigado a levar o flagelo à sua própria nação, àqueles bons boianases, dos quais ele se orgulhava de ser membro.

Pobre Irerê-una! Quanto lhe doía na alma ver cair um por um todos os guerreiros que ao seu lado outrora combatiam com galhardia, os melhores caçadores da tribo, e as donzelas, as casadas, as velhas, os pajés reverenciados e a criançada alegre! Quanto se amargurava o seu pobre coração em ver todo aquele povo, que era o seu, fulminado pelo fantasma horrendo, e a apodrecer pelos caminhos, sem ter mais quem se ocupasse em sepultar os cadáveres!

Mas que fazer? Todas as vezes que Irerê-una estacava, o fantasma esporeava-o, obrigava-o a caminhar, e a levar por toda a parte a devastação.

* * *

Tendo final Irerê-una chegado à margem de caudalosa torrente que bramia no fundo de um medonho abismo, disse à peste:

– Deixa-me agora Peste; já mataste todos os da minha nação e os das nações vizinhas; destruíste todos os homens, todas as mulheres, todas as crianças, e não ficou taba habitada; deixa-me, pois, terrível peste, nada mais tens a fazer aqui!...

– E aquele tujupar que se vê ali, na encosta do morro, quase a desaparecer por entre as pacoveiras? – disse a peste apontando para uma pequena choupana sumida entre a folhagem. – Ali há gente, homem; leva-me lá.

– Mas aquele tujupar é o meu, peste; Ali vivem minha mulher e filhos.

– Que me importa?! Leva-me ao tujupar da encosta do morro.

– Não, peste, não posso! Como poderei ver atirados à lama do tibicoe, entes que me são tão caros?! Minha mulher é a minha ventura, minha alegria, minha melhor companheira! Meus filhos, serão os perpetuadores do meu nome, os que se encarregarão de dizer aos vindouros as minhas bravuras e as minhas virtudes!

– Leva-me ao teu tujupar, – ordenou novamente a peste.

– Não, não posso; por tal preço seria a vida para mim pesada em extremo, não poderia sobreviver ao aniquilamento de minha mulher e de meus filhos, que tanto prezo.

E dizendo isso, Irerê-una, o malfadado, lançou-se de cabeça para baixo do abismo, e despedaçou-se nas pedras do fundo. A água tingiu-se com o seu sangue e os seus membros foram arrastados pela torrente.

A peste, assim que o infeliz despenhou, deixou-o, mas, como não possuía mais montaria, não pôde transportar-se ao ranchinho da encosta do morro, e despedindo-se da Terra voltou ao céu, subindo por um raio da Lua. Sacrificara-se Irerê-una para salvar sua família. Foi ela o tronco da nova nação goianaz.

* * *

O padre Salazar, com o queixo magro, sumido entre as mãos compridas, tinha ouvido atentamente toda a exposição desta lenda selvagem que para aqui transportamos, apenas alterando a linguagem do narrador. Logo que o velho cacique terminou, dirigiu-lhe a palavra:

– E assim, João Batista, desconfias daquele pobre Tupinambá que por aqui passou na lua-nova?

– De certo. Não vias, padre, como ele caminhava de cabeça tão baixa, que parecia vergado debaixo de um peso tão grande? Pode muito bem ser que o infeliz andasse a passear a peste pelo mundo.

(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.161-169)

Uma história do algodão

Jangada Brasil
Renato Almeida
Foi Heródoto, o célebre historiador grego, que viveu no século V antes de Cristo, quem se referiu a uma planta da Índia, que, em vez de fruto, produzia lã, melhor do que a do carneiro, com a qual se faziam vestimentas. Essa árvore era o algodoeiro. Ela aparece também na América, onde já era conhecida quando chegaram os conquistadores. Os indígenas o fiavam e teciam.

Contavam os índios mundurucu uma lenda, que associa o aparecimento do algodão com o dos homens no mundo. Em resumo é a seguinte - o primeiro homem, Caro Sacaibu tinha um filho Rainu, tipo inferior a quem odiava. Para livrar-se dele, imaginou um estratagema, que era fazê-lo desenterrar um tatu, o que não conseguiu, sendo assim levado pelo bicho para dentro da terra, de onde volveu não se sabe como. O certo é que disse a Caro Sacaibu que havia encontrado nas profundezas onde estivera uma grande quantidade de homens e de mulheres, que conviria de lá tirar, para lavrar a terra e fazê-la produzir. Aceita a idéia plantou Sacaibu uma semente e dela nasceu o algodoeiro. Depois que o arbusto cresceu e deu algodão, o deus tomou um pouco e fez um longo fio, a cuja ponta amarrou Rairu e fê-lo descer novamente pela terra a dentro. E de lá foi trazendo homens e mulheres, a princípio muito feios, depois mais belos e graciosos. Mas a cada descida e subida o fio ia se gastando até romper-se e assim muitas criaturas das mais perfeitas se perderam no abismo. Por isso a maior parte da humanidade é feia. Sacaibu dividiu os homens em tribos e lhes deu destino. O rebotalho, de fracos e miseráveis, transmudou em aves, e desde então os mutuns andam pelas florestas soltando gemidos plangentes.

Os cronistas e as cartas jesuíticas do primeiro século de nossa vida falam longamente do uso do algodão pelos indígenas, que o fiavam e teciam, as diversas utilidades que tinha, inclusive como arma de guerra, primitivos lanças-chamas, pois ateavam fogo em tochas de algodão na ponta das flechas incendiando aldeias inimigas, e como alimentação, cozinhando os caroços pisados, para fazer mingau.

(Almeida, Renato. Manual de coleta folclórica. Rio de Janeiro, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1965, p.106)
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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Jean-Jacques Rousseau, o filósofo da liberdade como valor supremo

Em sua obra sobre educação, o pensador suíço prega o retorno à natureza e o respeito ao desenvolvimento físico e cognitivo da criança

Márcio Ferrari
Rousseau. Foto: Araldo de Luca/Corbis
Jean-Jacques Rousseau


Na história das idéias, o nome do suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) se liga inevitavelmente à Revolução Francesa. Dos três lemas dos revolucionários - liberdade, igualdade e fraternidade -, apenas o último não foi objeto de exame profundo na obra do filósofo, e os mais apaixonados líderes da revolta contra o regime monárquico francês, como Robespierre, o admiravam com devoção.

O princípio fundamental de toda a obra de Rousseau, pelo qual ela é definida até os dias atuais, é que o homem é bom por natureza, mas está submetido à influência corruptora da sociedade. Um dos sintomas das falhas da civilização em atingir o bem comum, segundo o pensador, é a desigualdade, que pode ser de dois tipos: a que se deve às características individuais de cada ser humano e aquela causada por circunstâncias sociais. Entre essas causas, Rousseau inclui desde o surgimento do ciúme nas relações amorosas até a institucionalização da propriedade privada como pilar do funcionamento econômico.

O primeiro tipo de desigualdade, para o filósofo, é natural; o segundo deve ser combatido. A desigualdade nociva teria suprimido gradativamente a liberdade dos indivíduos e em seu lugar restaram artifícios como o culto das aparências e as regras de polidez.

Ao renunciar à liberdade, o homem, nas palavras de Rousseau, abre mão da própria qualidade que o define como humano. Ele não está apenas impedido de agir, mas privado do instrumento essencial para a realização do espírito. Para recobrar a liberdade perdida nos descaminhos tomados pela sociedade, o filósofo preconiza um mergulho interior por parte do indivíduo rumo ao autoconhecimento. Mas isso não se dá por meio da razão, e sim da emoção, e traduz-se numa entrega sensorial à natureza.
Revista Nova Escola

sábado, 17 de setembro de 2011

Antropofagia Tupinambá


A antropofagia era o principal ritual da sociedade tupinambá. Os tupinambás não guerreavam entre si por territórios ou riquezas. Guerreavam para fazer prisioneiros e comê-los, vingando-se dos parentes comidos pelos rivais e absorvendo, no rito antropofágico, a força do inimigo. Assim, reforçavam a identidade cultural do grupo. Esta gravura em metal, de Theodor de Bry, está na edição de 1592 do livro Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden, publicado originalmente em 1557.
História - Ronaldo Vainfas e outros.Editora Saraiva, 2010.


Manuela Carneiro da Cunha
Revista Estudos Avançados - USP
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Cães, Canibais

Paradoxalmente, a outra imagem que se vulgariza, e que se torna emblemática do Brasil é a dos índios como canibais. Em 1540, por exemplo, o mapa de Sebastian Munster, na Geografia de Ptolomeu publicada em Basileia, coloca laconicamente, no espaço ainda largamente ignoto entre a boca do Amazonas e a boca do rio da Prata, a palavra Canibali, e a ilustra com um feixe de galhos de onde pendem uma cabeça e uma perna (Schwartz e Ehrenberg 1980, p.50, p1.18 e p.45)."São cãis em se comerem e matarem" escreverá Nóbrega (Nóbrega in Leite vol.II:321), implicitamente evocando a assimilação que o Renascimento fez entre canibais e cinocéfalos, homens com cabeça de cães, como explica Rabelais no seu glossário do Quarto Livro de Pantagruel: "Canibales, peuple monstrueux en Afrique, ayant la face comme chiens et aboyant au lieu de rire" (Rabelais 1955(1552): 737). ps canibais são, na verdade, um fantasma, uma imagem, que flutua por muito tempo no imaginário medieval sem lograr ser geograficamente atribuído. Colombo, ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram, permite uma primeira localização americana desse fantasma, assimilando caribes e canibais numa sinonimia que irá perdurar, no século XVIII, até à Enciclopédia.

Antropófagos Mas Não Canibais

Os Tupi, no entanto, não são canibais, e sim antropófagos: a distinção que é, num primeiro momento léxica, e mais tarde, quando os termos se tornam sinônimos, semântica, é crucial no século XVI, e é ela quem permitirá a exaltação do índio brasileiro. A diferença é esta: canibais são gente que se alimenta de carne humana; muito distinta é a situação dos tupi que comem seus inimigos por vingança.

É assim que Pigafetta distingue os brasileiros que são antropófagos, dos canibais, imediatamente ao sul (A.Pigafetta 1985 (1524?). Thévet que assimila canibais, caribes insulares das Antilhas e possivelmente os caetés ou os potiguaras, escreve: "Os canibais, cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Marinhão, são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos, não passando de uma canalha habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro, se não até com maior satisfação" (A.Thevet 1971(1558): 199). Thévet chega a declarar que os "canibais" alimentam-se exclusivamente de carne humana (A.Thevet 1978 (1558): 100). Mas os Tupinambá, se comem aos inimigos, "fazem isto, não para matar a fome, mas por hostilidade, por grande ódio" (H.Staden: 176).

Quanto a Américo Vespucci, o primeiro a falar da instituição entre os tupi, uma leitura desatenta que poderia sugerir que ele esteja relatando uma antropofagia alimentar. O que ele diz, no entanto, falando da dieta variadíssima dos índios (ervas, frutas ótimas, muito peixe, mariscos, ostras, camarões e caranguejos), é que, quanto à carne, por não terem cachorros que os ajudem na caça, a que mais comem é carne humana (Vespucci, Carta a Lorenzo de Medici, Lisboa, outono de 1501 in L.N.d'Olwer 1963: 542). Um ano antes, em outra carta, relatando sua viagem à ilha da Trinidad, Vespucci havia falado, aí sim, dos canibais que vivem de carne humana (Vespucci, Carta a Lorenzo de Mediei, Sevilha, 18.07.1500 in L.N.d'Olwer 1963: 43).

A antropofagia, nisso não se enganaram os cronistas, é a Instituição por excelência dos tupi: é ao matar um inimigo, de preferência com um golpe de tacape, no terreiro da aldeia, que o guerreiro recebe novos nomes, ganha prestígio político, acede ao casamento e até a uma imortalidade imediata. Todos, homens, mulheres, velhas e crianças, além de aliados de outras aldeias, devem comer a carne do morto. Uma única exceção a esta regra: o matador não come sua vítima. Comer é o corolário necessário da morte no terreiro, e as duas práticas se ligam: " Não se têm por vingados com os matar sinão com os comer" (A.Blasquez a Loyola, Bahia, 1557 in Navarro e outros, 1988, p. 198). Morte ritual e antropofagia são o nexo das sociedades tupis (10).

São esses canibais que conhecerão com Montaigne uma consagração duradoura. Tornam-se a má-consciência da civilização, seus juizes morais, a prova de que existe uma sociedade igualitária, fraterna, em que o Meu não se distingue do Teu, ignorante do lucro e do entesouramento, em suma, a da Idade de Ouro. Suas guerras incessantes, não movidas pelo lucro ou pela conquista territorial, são nobres e generosas. Regidos pelas leis naturais, ainda pouco abastardas, estão próximos de uma pureza original e atestam que é possível uma sociedade com " peu d'artífice et de soudeure humaine" . Em uma passagem que Shakespeare retomará na sua Tempestade, Montaigne resume essas virtudes: " C 'est une nation... en laquelle il n*y a nulle espèce de trafique; nulle cognoissance de lettres; nulle science des nombres; nul nom de magistrat, ny de supériorité politique; nul x usage de service, de richesse ou de pauvreté; nuls contracts; nulles successions; nuls partages; nulles occupations qu 'oysives; nul respect de parenté que communnuls vestemens: nulle agriculture: nul métal; nul usage de vin ou de bled. Les paroles mesmes qui signifient le mensonge, la trahison, la dissimulation, I'avarice, I 'envie, la détraction, le pardon, inouies" (Montaigne 1952(1580): 235-236) (11). Até sua culinária é sem artifícios! Este resumo das virtudes dos canibais, com seus lapsos evidentes - a agricultura por exemplo, existe entre os Tupis (12) - não é um discurso de etnólogo e sim de moralista, e como tal deve ser entendido: constitui o advento de uma duradoura imagem, a do selvagem como testemunha de acusação de uma civilização corruptora e sanguinária. Não é fortuito que Montaigne, no fim de seu ensaio, mencione as objeções que ouviu de três índios brasileiros com quem o rei Carlos IX (que entrava em Ruão, em 1562, após a rebelião e a subjugação da cidade), conversou. Estranhavam que homens feitos obedecessem a uma criança - o rei. E estranhavam que existissem na mesma sociedade ricos e mendigos (Montaigne, ibidem: 243-4)....

Descobrimentos - A crônica do achamento

Escrivão renomado, Pero Vaz de Caminha põe beleza, admiração e confiança no relato de uma viagem sem par
O brasão da família Caminha: morte cruel em Calicute

Muitos caminhos e muitas terras estão sendo visitados pela primeira vez nestes tempos. Nenhum contou com descrição mais primorosa e admiração mais explícita do que Santa Cruz, a terra que o capitão Pedro Álvares Cabral descobriu e à qual seu escrivão, Pero Vaz de Caminha, deu vida em sete folhas de papel cobertas de escrita miúda. A visão do Monte Pascoal e, depois, dia a dia, o contato dos portugueses com a terra desconhecida são descritos com tal riqueza e profusão de detalhes que, ao fim, Caminha pede ao rei perdão "se a algum pouco alonguei". Não precisava – nada é demais sobre esse lugar tão estranho, com sua gente nua e pintada.

Natural do Porto, Pero Vaz vem de família burguesa de boa cepa. Escrivão, filho de escrivão, cuidava no Porto de anotar as taxas e os impostos devidos ao Tesouro do reino, como mestre da Balança da Moeda. Fiel servidor e cavaleiro dos últimos três reis, aos 50 anos, já avô, viu-se convocado pelo atual soberano para escrivão da nau de Cabral (cada navio tinha o seu, para anotar receita, despesa e falecimentos). Quando a expedição chegasse a termo na Índia, deveria ocupar o mesmo posto na feitoria portuguesa em Calecute. A missão acabou em tragédia. Ao cabo de três mesec, a feitoria foi atacada e seus 50 ocupantes, entre eles Pero Vaz de Caminha, massacrados diante dos olhos do capitão Cabral, ancorado a pouca distância dali. Caminha morreu sem saber que, em reconhecimento a seu valor, dom Manuel decidiu acatar o pedido anotado nas últimas linhas – perdoar e dar por encerrado o exílio de seu genro Jorge de Osório. Leia a seguir os trechos mais importantes da carta sobre o descobrimento da nova terra, avistada pela primeira vez na quarta-feira, 22 de abril de 1500:

"À quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em direito da boca dum rio. E dali houvemos vista de homens, que andavam pela praia, obra de sete ou oito. E o capitão mandou no batel, à terra, Nicolau Coelho, para ver aquele rio. E tanto que ele começou para lá ir, acudiram pela praia homens, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, eram ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos para o batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos; e eles os puseram. Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas de aves compridas com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu continhas brancas, miúdas.


A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços debaixo furados e metidos por eles ossos de osso branco. Os cabelos seus são corredios, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia uma maneira de cabeleira de penas de ave amarela, mui basta e mui cerrada. O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira e uma alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço. E nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão por essa alcatifa. Entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém, um deles pôs olho no colar do capitão e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata.


Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, mel e figos; não quiseram comer daquilo quase nada. E alguma coisa, se a provaram, lançavam-na logo fora. Troxeram-lhes vinho por uma taça, mal lhe puseram assim a boca e não gostaram dele nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes água, tomaram dela bocados e não beberam. Somente lavaram as bocas e lançaram fora. E então estiraram-se assim de costas na alcatifa, a dormir, sem ter nenhuma maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas e as cabeleiras delas bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr às cabeças coxins e o da cabeleira procurava assaz por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto em cima e eles consentiram e dormiram.

Ao sábado pela manhã, mandou o capitão Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar camisas novas e carapuças vermelhas e dois rosários de contas brancas de osso, que eles levavam nos braços. E mandou com eles para ficar lá mancebo degredado, a que chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneira; e a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim direitos à praia. Ali acudiram logo obra de 200 homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pusessem os arcos e eles os puseram e não se afastavam muito. E, mal puseram seus arcos, então saíram os que nós levávamos e o mancebo degredado com eles. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha.


Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu, a qual disse o padre frei Henrique. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seriam na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como os de ontem, com seus arcos e setas, os quais andavam folgando e olhando-nos, e assentaram-se. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Foram alguns, em nós aí estando, buscar marisco e não o acharam. E acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho.

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diego Dias, que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita.

À segunda-feira, depois de comer saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos e estiveram assim um pouco afastados de nós. E depois, poucos e poucos, misturaram-se conosco e abraçavam-nos e folgavam e alguns deles se esquivavam logo. Neste dia, os vimos de mais perto e mais à nossa vontade, por andarmos todos quase misturados. E o capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem andar lá entre eles. Foram a uma povoação de casas, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que era tão comprida cada uma como esta nau capitânia. E eram de madeira, e das ilhargas, de tábuas, e cobertas de palha. Tinham dentro muitos esteios e de esteio a esteio uma rede, em que dormiam, e, debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma em um cabo e outra no outro. E diziam que, em cada casa, se acolhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os achavam e que lhes davam de comer daquela vianda que eles tinham, a saber: muito inhame e outras sementes, que na terra há, que eles comem. E, como foi tarde, fizeram-nos logo todos tornar e não quiseram que lá ficasse nenhum.

À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram-se logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E enquanto nós fazíamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande cruz dum pau que se ontem para isso cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros e creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro, com que a faziam, que por verem a cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja.



À quarta-feira não fomos em terra, porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo quase pela manhã e fomos em terra por mais lenha e água. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles e daí a pouco começaram de vir; e parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Comiam conosco do que lhes dávamos e bebiam alguns deles vinho e outros o não podiam beber, mas parece-me que se lho avezarem, que o beberão de boa vontade. E andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles.

Quando saímos do batel, disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz, e que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos, para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim o fizemos. E esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhes que fizessem assim e foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se os homens entendessem e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem em nenhuma crença, segundo parece. Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária, que costumada seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame que aqui há muito e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos.

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz para ser melhor vista. Chantada a cruz com as armas e divisa de Vossa Alteza, que lhe primeiro pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos em joelhos, assim como nós.

Esta terra, Senhor, me parece que será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa; traz ao longo do mar grandes barreiras, e a terra muito cheia de grandes arvoredos; é toda praia muito formosa. Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro. Porém, a terra, em si, é de muito bons ares. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem. Porém, o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente.


E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta vossa terra vi. E, se a algum pouco alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assim pôr pelo miúdo. E, pois que, Senhor, é certo que assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há-de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé Jorge de Os&oacete;rio, meu genro, o que d'Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, de vossa ilha da Vera Cruz, hoje sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500."
Revista Veja na História

Descobrimentos - Diplomacia do Canhão

Gentil no trato, o capitão Cabral também usa a força e traz saldo positivo da viagem às Índias
O brasão dos Cabral: família de guerreiros

Aos 32 anos, fidalgo de maneiras elegantes, alto como seu pai, o famoso "gigante da Beira", o capitão-mor Pedro Álvares Cabral trouxe da longa missão diplomático-comercial (um ano e três meses no mar) resultado positivo, apesar de consideráveis percalços. Ele refez a rota desbravada por Vasco da Gama para as Índias, de passagem descobriu a formidável terra desconhecida nos confins do Mar Oceano e instalou o primeiro entreposto comercial nas bandas do Oriente. Não conseguiu, porém, estabelecer a feitoria que inaugura o intercâmbio comercial entre a Europa e as Índias por via marítima no riquíssimo reino de Malabar, como era o objetivo principal. Ao contrário, as relações com Calicute, capital de Malabar, parecem arruinadas por graves incidentes que deixaram pilhas de cadáveres dos dois lados. O saldo da missão reflete a própria personalidade do capitão. Fidalgo de fino trato, ele se desdobrou para cumprir as instruções do rei dom Manuel no sentido de sempre dar "boas mostras de si e da armada", procurando soluções diplomáticas em situações complicadas. Numa demonstração de delicadeza d'alma rara entre navegadores de todas as estirpes, chegou a mandar cobrir os nativos de Santa Cruz que, durante a escala na terra recém-descoberta, pegaram no sono a bordo de sua nau, protegendo-os da brisa noturna. Homem de armas por formação, recorreu à diplomacia dos canhões quando julgou necessário.

O uso da força, mesmo em missões de caráter diplomático ou comercial, é de praxe. Nos treze navios da esquadra que comandou, Cabral levou um verdadeiro exército. Eram 1.200 homens, a maior parte gente de guerra. Mesmo com a armada consideravelmente reduzida (uma embarcação desapareceu, outra foi mandada de volta a Portugal com a notícia do descobrimento de Santa Cruz e quatro naufragaram a caminho do Cabo da Boa Esperança), Cabral fez uso dos canhões a partir das escalas na costa oriental da África. Os primeiros alvos foram duas naus supostamente mouras e logo aprisionadas – os muçulmanos do norte da África são inimigos tratados a bala por Portugal. Uma gafe. As naus eram, na verdade, de Melinde, cidade africana onde Vasco da Gama havia sido muito bem recebido na viagem anterior. Restou a Cabral pedir desculpas. O capitão e sua frota chegaram ao destino principal da viagem, Calicute, em 13 de setembro do ano passado, disparando salvas de tiros de canhão. A idéia era intimidar o samorim, como é chamado o rei desse rico pedaço das Índias. Inicialmente, funcionou. O soberano de Calicute aceitou enviar reféns à frota portuguesa como garantia de que uma delegação encabeçada por Cabral poderia desembarcar para tratar de negócios, sem risco de vida. Vestindo seus melhores trajes e até com jóias emprestadas, para impressionar a nobreza da terra, os emissários recém-chegados realizaram o primeiro contato oficial. Depois de muita insistência, o soberano acabou concordando com a instalação de uma feitoria na cidade. A aparente cordialidade, no entanto, não evitou um boicote. Durante os três meses em que os seis navios portugueses permaneceram parados no Porto de Calicute, apenas dois foram carregados com especiarias. Espertamente, o samorim alegou que a culpa era dos mercadores mouros havia muito instalados nas Índias, aborrecidos com a concorrência. Para lhes dar uma lição, Cabral resolveu apreender, saquear e bombardear uma nau mourisca que estava parada no porto. A represália não tardou. A feitoria portuguesa foi invadida, com saldo de cinqüenta mortos, incluindo seu chefe, Aires da Cunha (o filho dele, Antonio, de 12 anos, escapou por pouco), e o escrivão Pero Vaz Caminha. A reação de Cabral ao trágico massacre veio com força total. A frota portuguesa recebeu ordens de atacar dez naus mouras, fundeadas no porto, deixando cerca de 600 mortos. De quebra, bombardeou Calicute, destruindo parcialmente a cidade, com seus belos e frágeis palácios. Até o samorim, com sua corte, precisou fugir do canhonaço. Cabral mostrou força, sem dúvida, mas fechou uma porta para o comércio.

Para salvar a empreitada, Cabral seguiu rumo aos reinos vizinhos de Cochim e Cananor, inimigos de Calicute. A tática de explorar as rivalidades locais deu certo. Foi nesses reinos que a missão portuguesa estabeleceu relações comerciais, abrindo finalmente as portas do comércio com as Índias e suas perspectivas tão promissoras. Mesmo desfalcada, a frota de Cabral está voltando dessa primeira viagem abarrotada de especiarias – canela, gengibre e, principalmente, pimenta. Financeiramente, o capitão conseguiu com isso o saldo mais positivo da missão. O valor da quantidade de especiarias transportadas é suficiente para pagar três vezes o custo da viagem. E isso, afinal, é o que interessa.

Revista Veja na História

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sacristias e Minas de Ouro




ALBERTO MORAVIA
Texto foi publicado no "Corriere della Sera" em 28 de setembro de 1960. Tradução de Adriana Marcolini.

A história do primeiro assentamento português no Brasil, como observa Paulo Prado, autor de um pessimista e, justamente porque pessimista, patriótico ensaio sobre o seu país ("Retrato do Brasil - Ensaio sobre a Tristeza Brasileira"), é a história do violento estupro de um país virgem por parte de grupos relativamente escassos de conquistadores renascentistas ávidos e cruéis.

Na origem dos Estados Unidos está o lendário desembarque dos puritanos do Mayflower, e não se está dizendo aqui que eles fossem todos perfeitos, mas eram puritanos, como é possível observar ainda hoje estudando a marca que deixaram no seu povo; na origem do Brasil existe, ao contrário, a cobiça, ou seja, a ganância do ouro, isto é, efetivamente, o extermínio sistemático dos índios na prisão perpétua das minas, a escravidão dos negros, a fundação de uma sociedade baseada no tráfico e no latifúndio. Assim, no Brasil foram universais e fundamentais desde o princípio as condições sociais e econômicas encontradas apenas no sul dos EUA. Qualquer um que saiba quão longa é a história da decadência e da lenta corrupção do sul dos EUA não pode deixar de admirar o esforço potente do Brasil, que, apesar do passado incômodo, conseguiu se tornar um país moderno.

Paulo Prado inicia seu ensaio com estas palavras: "Em uma terra radiosa vive um povo triste. Essa melancolia é a herança dos descobridores que revelaram o Brasil ao mundo e o povoaram. O esplêndido dinamismo desse povo rude obedecia aos dois grandes impulsos que dominam toda a psicologia da descoberta e que nunca foram fonte de alegria: a ganância do ouro e a sensualidade desenfreada".

Deixando de lado a sensualidade, que, apesar de tudo, teve a sua importância na drenagem e no esgotamento da energia dos conquistadores, e fixando-nos no primeiro impulso, resta a observar ainda que a diferença entre as duas colonizações, aquela da América do Norte e a do Brasil, é principalmente uma diferença ideológica, como se costuma dizer agora. Não se deve deixar iludir por palavras moralistas como avidez e sensualidade. Na realidade, essas paixões refletem um conceito da vida tão válido quanto o calvinista, isto é, a concepção renascentista e humanística como, de resto, reconhece o próprio Prado. A fatalidade histórica quis que o humanismo, que parecia então ser tão poderoso e florescente, viesse a ser o cavalo perdedor; e o calvinismo, o vencedor; isso pouco importa.

A melancolia sobre a qual discorre Paulo Prado não é apenas aquela que, segundo o velho provérbio latino, acompanha o ato sexual; mas sim a de uma concepção derrotista da vida, que já está embalsamada. A provar que isto seja verdade está a beleza das cidades grandes e pequenas criadas por esta sociedade de aventureiros e latifundiários ao longo do litoral entre Rio e Recife e principalmente no interior de Minas Gerais, ao redor de Belo Horizonte.

Ouro Preto, Sabará, Congonhas, Diamantina, Olinda e tantas outras estão ali, a testemunhar com suas igrejas barrocas, seus prédios majestosos, suas casinhas lusitanas e um urbanismo irregular, elegante, musical e repleto de intimidade que os "bandeirantes", os "paulistas", enfim, os aventureiros, eram sim, cruéis e impiedosos, mas também tinham algo a dizer.

Tome-se, por exemplo, Ouro Preto, cujo próprio nome é revelador. Situada em uma área de minas abandonadas, entre lindas colinas tropicais e verdejantes, já se tornou uma cidade-museu, um museu, justamente, do humanismo que está morto: ruazinhas que sobem, com a pavimentação de pedra, em meio a graciosas fachadas vermelhas e cinzas, e a grandes, suntuosas igrejas barrocas com pátios gramados em frente, nos quais os garotos se dedicam apaixonadamente ao esporte nacional, o futebol, janelas com grades bonitas e robustas, portões fechados e enferrujados, jardins densos, taciturnos por uma estátua escura e uma ou outra fonte entupida, tudo em Ouro Preto respira a graça, a harmonia, a intimidade, a doçura de um viver puro e sem remorsos. Apesar disso, perto da cidade, nas minas hoje abandonadas, morriam aos milhares os escravos índios e negros utilizados na separação das pedras auríferas.

A sociedade de Ouro Preto tinha duas caras: de um lado as minas de ouro e pedras preciosas, isto é, a cobiça, a ganância; de outro, as igrejas, ou melhor, aquela parte da igreja em que geralmente são dispostas as peças decorativas sacras, ou seja, a sacristia. No Brasil, apesar da beleza das igrejas, sente-se, de fato, que do ponto de vista social a sacristia foi mais importante que o altar. Isso porque a igreja, aqui, não soube ou não quis se opor ao humanismo violento e aventureiro dos conquistadores. A igreja tão renascentista e humanista quanto a sociedade que teria de cristianizar. Daí a maior importância da sacristia, local social, contra o altar, local religioso.

Sacristias do Brasil. Visitei dezenas e dezenas e todas as vezes reencontrei o fascínio melancólico da antiga sociedade colonial. Em geral, chega-se a essas sacristias não por passagens escuras ou por simples portas, mas sim por amplos corredores luminosos quase sempre decorados com azulejos, aquelas cerâmicas azuis com ilustrações de temas religiosos ou mitológicos que são uma das mais bonitas criações da civilização ibérica.

Os azulejos perderam o revestimento, estão apagados, sem cor, mas seus desenhos continuam a comover ainda hoje, não mais pela inspiração religiosa, quase sempre ausente, mas sim pela humanista, tão amável e vivaz: mitos gregos e romanos, história sacra, vida dos santos, tudo está coberto por uma capa renascentista, tudo está iluminado pelo sol do Mediterrâneo e transformado em uma aventura humana. Os azulejos cobrem as duas paredes, à maneira de um rodapé; entra-se então na sacristia, passando por uma linda porta fechada com uma trave esculpida.

Ela é extraordinariamente vasta e sugere logo a idéia de um lugar de reunião, de associação e discussão. O teto é revestido por grandes caixotões profundos e decorados, as paredes têm um rodapé de azulejos, os pisos são de mármore ou de mosaico. Armários imensos, medindo entre cinco e dez metros, ficam junto às paredes, é importante descrevê-los porque são de longe as peças mais expressivas desses lugares. Esses armários são de jacarandá, uma madeira muito escura, quase preta, com veias vermelhas e brancas, a única, pelo que parece, a resistir às mandíbulas dos cupins.

Esculpidos em um estilo barroco ao mesmo tempo rústico, austero e monumental, esses armários têm portas enormes, trabalhadas, elementos decorativos que saltam para fora, fechaduras de ferro elaboradas. Ao se abrir uma gaveta, ela resiste por um bom tempo, mas depois abre e deixa entrever uma profundidade de cinco, dez metros, grande e extravagante como os móveis de cozinha que outrora eram usados para fazer e conservar o pão, feitos com tábuas maciças de três dedos de altura. Esses armários são baixos a fim de permitir que se coloquem em cima não apenas as peças decorativas, mas também os copos e garrafas dos sucos servidos durante as reuniões.

Os outros móveis das sacristias coloniais são todos do mesmo tipo dos armários: mesas, estantes, cadeiras, poltronas, genuflexórios, banquinhos, tudo é cortado com o machado, esculpido com um cinzel, tudo é maciço, monumental, imóvel, feito para sugerir a idéia da potência e da permanência.

Naturalmente, a sacristia no Brasil era o complemento indispensável do confessionário para uma sociedade que ignorava os próprios pecados mais graves e, de qualquer maneira, submetia-os à avaliação da confissão cristã, mas sentia, do mesmo modo, a necessidade de relacionar, de alguma maneira, as próprias atividades sociais à religião. Nas sacristias do Brasil se sente que todos os acontecimentos e todas as paixões grandes e pequenas da sociedade escravista passaram por ali: casamentos, heranças, conflitos familiares e sociais, amores, ódios, interesses e ambições. O padre que se sentava como juiz de todas esses episódios era o mesmo padre que pouco antes havia escutado as confissões, na igreja.

Vi na Bahia uma cena de outros tempos, em uma dessas sacristias. Em uma enorme mesa branca, na penumbra, estava sentado um pad re de fisionomia pálida e aristocrática, com uma expressão singular que era uma mistura de inteligência arguta e estóica resignação. Escutava as confissões de uma volumosa negra jovem e graciosa, que falava com uma voz baixíssima, mas torrencialmente, quase o submergindo nas palavras. As mãos da mulher se agitavam, decoradas por anéis cintilantes e baratos; as do padre, brancas, longas, magras, com as unhas bem cuidadas, se contorciam uma dentro da outra, de leve, às vezes.

Mas, como dissemos, as sacristias são um dos aspectos da sociedade colonial, o outro é a cobiça, ou seja, a ganância do ouro. Em Sabará, um pequeno, mas muito didático museu é dedicado exclusivamente aos instrumentos e à história dessa ganância.

A cidade de Sabará invoca plasticamente a maldição originária do metal estéril que os conquistadores, com uma obsessão hoje quase incompreensível, colocavam sobre o simples e criativo trabalho humano. Sabará é um povoado antigo situado em um lugar parecido com aquele de Ouro Preto: colinas verdejantes, um rio, campos e mata. Mas o rio, não sei se devido aos dejetos industriais ou por causa da natureza do terreno que atravessa, é preto, preto mesmo, e esse rio de tinta corre em meio a uma densa vegetação tropical, carregada e corpulenta, totalmente desprovida de frescor e alegria.

Outrora, o leito daquele rio era aurífero. Para extrair o ouro, nesses declives hoje cobertos de vegetação, foram construídos sistemas complexos de comportas, canais e filtros que permitiam, após longas lavagens, separar o ouro da areia. Inicialmente, os escravos e os índios, e mais tarde, quando os índios foram todos mortos, os negros, subiam e desciam esses declives, do rio às comportas e vice-versa.

Como acontecia essa lavagem de ouro? Escreve Paulo Prado, em seu livro já mencionado: "Escavavam dia e noite até que os escravos se esgotavam completamente... mudavam o curso dos rios, abriam vales, remexiam nas entranhas da terra... Sebastião Pinheiro Raposo, da Bahia, fazia seus escravos trabalharem nos riachos de Mato Grosso, desde o amanhecer até às dez da noite, à luz de tochas, recolhendo nove arrobas de ouro por dia".

No museu montado em uma antiga e graciosa casa da época colonial na qual outrora se encontrava a sede da agência estatal para a coleta de ouro, à luz dessas informações, todos os instrumentos para a busca de ouro, rústicos e maciços, exalam um ar de grande solidez e parecem instrumentos de tortura. Diante dos baús de madeira e ferro nos quais, no dorso dos burros, viajavam os lingotes destinados à casa da moeda de Lisboa, não se pode deixar de pensar na quantidade de vidas humanas que foram necessárias para cada lingote.

Não se trata de retórica humanitária, mas de simples cálculo. De fato os índios adultos, homens e mulheres, outrora habituados à liberdade infinita, morreram de cansaço nos seixos dos rios; seus filhos morriam em casa por falta de assistência, uma vez que os pais estavam nas minas. Foi dessa maneira que os índios desapareceram. E assim, uma vez mortos os índios, cresceu o tráfico negreiro.

Contudo, também nesse museu o humanismo, ou seja, a concepção da vida renascentista embeleza os velhos instrumentos da dor, cobrindo com um verniz de melancolia os grilhões da escravidão. Os baús de ferro nos quais eram guardados os lingotes são mais bonitos que os cofres modernos; os livros contábeis, com grandes páginas de um papel grosso com o brasão de armas de Portugal, escritos com caligrafias decoradas e trabalhadas, são mais atraentes que os frios registros atuais; e os poucos móveis, pesados e envelhecidos, são mais calorosos e decorativos que os adornos metálicos e funcionais dos nossos escritórios.

Mas também é verdade que foi justamente essa indiferença ou, pior, a conivência do humanismo brasileiro e não brasileiro com os mais terríveis sistemas de servidão que acabou por introduzir o germe da retórica. O humanismo se tornou retórico porque era desumano. Ao final, quando a concepção humanista da vida evaporou, permaneceu apenas a retórica.
Folha de São Paulo

A Expansão Oceânica Portuguesa

Livro traz nova visão da expansão marítima portuguesa
da Efe, em Londres

A editora da Universidade de Cambridge publicou o livro "The Portuguese Oceanic Expansion, 1400-1800" ("A Expansão Oceânica Portuguesa, 1400-1800", em tradução livre), que pretende ser "uma visão global e atualizada" das navegações portuguesas, já que as sínteses disponíveis em inglês são antigas ou só cobrem períodos curtos, como os séculos XV e XVI.

Reprodução

Quadro encomendado pelo historiador inglês Kenneth Light, representa a chegada da família real de Portugal ao Rio


A afirmação é do professor Francisco Bethencourt, do King's College de Londres e co-editor da obra com Diogo Ramada Curto, do European University Institute de Florença (Itália).

O livro pretende apresentar as mais recentes pesquisas de especialistas de diversos países, deixando de lado as perspectivas nacionalistas, para o qual contou com pesquisadores de várias nacionalidades e que trabalham em várias universidades.

Entre esses centros de ensino estão a Universidade de Sorbonne (Paris), a de Lisboa, a de Tecnologia de Sydney, a de Montreal ou as americanas Johns Hopkins, Yale e a de Boston.

"Pela primeira vez integramos, além disso, a literatura e as artes nesse tipo de história geralmente dominada pela política e pela economia", diz Bethencourt.

Uma grande parte do livro é dedicada ao "mundo cultural", dividida em capítulos como a cultura colonial e imperial portuguesa, a linguagem e a literatura no império português, a expansão e as artes, e a ciência e a tecnologia.

Portugal e Espanha

Sobre as diferenças essenciais entre os impérios de Portugal e da Espanha, Bethencourt afirma que esse último "era relativamente mais centralizado do que o português, onde o poder dos capitães e governadores de província era maior".

"O império português era, além disso, mais corporativo e clientelista: o rei utilizava habitualmente os postos administrativos e militares para premiar serviços ou manter fidelidades".

Os diferentes modelos de expansão dos dois impérios - penetração e ocupação territorial ou estabelecimento comercial nas zonas litorâneas - podem ser explicados pelas possibilidades locais, segundo Bethencourt.

"Foi Hernán Cortés quem concebeu a idéia de um império territorial espanhol, em contraste com um império português de tipo comercial", afirma o professor.

Brasil, África e Ásia

"O fato é que o império português foi territorial no Brasil, comercial na África, com alguma expansão territorial em partes da atual Angola e Moçambique, e comercial também na Ásia, embora com expansão territorial no Ceilão", diz.

"Os espanhóis tinham sonhos de expansão territorial na Ásia, mas suas expedições na Indochina ou na atual Indonésia foram um fracasso, por que tudo dependia das condições locais e não das 'qualidades essenciais' dos diferentes conquistadores", acrescenta.

Epidemias

Bethencourt reconhece o "devastador impacto" na população indígena da América, das guerras e dos deslocamentos de povoações, e, principalmente, das epidemias transmitidas pelos europeus.

"As culturas locais foram aniquiladas em grande parte, embora as novas pesquisas históricas tenham descoberto forte resistência e capacidade de negociação das povoações ameríndias nos séculos XVI e XVIII", afirma.

Escravidão e disputa

O professor revela que o tráfico de escravos foi outro impacto crucial da expansão ibérica: mais de 12 milhões de africanos foram transportados para a América, uma especialidade dos portugueses, que levaram cerca da metade dos escravos, em relação aos pouco mais de 30% transportados nos navios ingleses.

Em relação ao impacto da rivalidade holandesa no desenvolvimento do império português, Bethencourt lembra que os holandeses combateram os portugueses entre 1600 e 1660 em três continentes.

"Ganharam na Ásia, perderam totalmente no Brasil e foram expulsos dos principais portos da África. Como conseqüência, o eixo do império português na Ásia se deslocou definitivamente para o Atlântico, onde os portugueses tinham muito mais recursos humanos", diz.

Imigração

Calcula-se que, entre 1450 e 1800, mais de 1,5 milhão de portugueses emigraram, o que é um fenômeno em uma população que era de apenas um milhão no início desse período e atingiu três milhões ao final, afirma Bethencourt.

"A concentração desses recursos humanos no Brasil e nas ilhas atlânticas, assim como a relação bipolar entre Brasil e África, permite explicar a derrota dos holandeses no Atlântico", conclui.
Folha de São Paulo